Cipriano Luckesi
Contato --- ccluckesi@gmail.com
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1.
O
QUE É SENSO CRÍTICO?
Iniciemos
por compreender, lógica e metodologicamente, o que significa senso crítico.
De
início, importa clarear que existe uma modalidade de agir cognitiva e
praticamente denominada “ser crítico” vinculada ao “senso comum”; senso este
que é pragmático, linear, automático. Ou seja, dado alguma coisa, só existe uma
possibilidade de encaminhamento e de solução --- “certa” ou “errada” ---, sem
que haja nenhuma outra possibilidade.
Contudo,
lógica e metodologicamente, existe uma outra possibilidade de “ser crítico”,
vinculada ao que efetivamente se denomina de “senso crítico”, isto é, à
compreensão de que a realidade é multideterminada, o que implica que os juízos
de “certo” ou “errado” não são simples, nem lineares, mas que se dão no seio de
uma complexidade de fatores intervenientes e determinantes.
Nosso
senso comum cotidiano é pragmático, linear, o que implica que se dá por um
recurso de reação instantânea, automática, habitual. A maior parte de nossas
condutas diárias se dão por um processo automático. Aprendemos a pensar e agir
dessa forma e, “dessa forma”, reagimos automaticamente.
No
processo evolutivo, a natureza configurou para o ser humano dois modos de
pensar e agir --- o automático (habitual) e o processado de modo consciente.
Grande parte, ou a quase totalidade do nosso cotidiano, é regido por condutas
automáticas. Para uma pequena parte de nossas condutas, nos servimos do
processamento consciente, fator que exige mais esforço de pensamento, escolha e
decisão.
Aristóteles,
que viveu no século IV a.C, formulou os três princípios da lógica do pensar e
do comunicar, que tem sido denominada de formal. São eles:
01. princípio de “identidade” que afirma que “A =
A”, isto é, alguma coisa, para ser conceituada como ela mesma, deverá ser
sempre idêntica a si mesma;
02. princípio de “contradição”, que, de outra
maneira, afirma a mesma coisa, isto é, que alguma coisa não pode ser a sua
própria negação --- “A não pode ser não-A”, ou seja, “se é A, só pode ser A”;
03. por último, o princípio do “terceiro excluído”, que, confirmando o primeiro e
segundo princípios, diz que “entre A e não-A, não existe uma terceira
possibilidade”, isto é, alguma coisa só pode ser ela mesma e, caso seja outra
coisa (negação de A), não é mais ela, é outra coisa.
Caso
prestemos bem atenção, observaremos que os três princípios giram em torno da
compreensão de que só podemos fazer afirmações consistentes caso sempre
estejamos nos referindo a mesma coisa, isto é, usando o princípio da identidade;
caso nossa referência seja outra coisa, também a afirmação será outra. É uma
lógica simples, direta, mas necessária para a constituição do entendimento
válido sobre um fenômeno, em particular, seja ele qual for.
O
princípio de identidade --- desdobrado em três, para dar precisão ao seu
entendimento --- rege nossa forma de pensar no dia a dia, assim como nos
diversos ramos de conhecimento, da filosofia, da ciência, da cultura, desde que
tratamos de fenômenos individuais e sobre eles produzimos nossos entendimentos
válidos.
Aristóteles
descobriu o princípio fundante de nosso modo natural de pensar, com lógica e
consequência. Ele é válido do ponto de vista lógico, ou seja, cria as condições
de validade de um juízo, positivo ou negativo (“é isso”; “não é isso”).
Contudo, esse princípio foi utilizado durante muito tempo como se a realidade,
que se dá ao conhecimento, fosse sempre “simples”. Ocorre que os objetos do
conhecimento nem sempre são simples; ao contrário, na maior parte das vezes,
são complexos.
Marx,
no decurso do século XVIII --- no contexto dos movimentos pela compreensão da
história e da sociedade como ciências --- estabeleceu que, para abordar a
realidade, necessitamos ter presente que os fenômenos em estudo são
configurados por “múltiplas determinações”, tanto diacrônicas como sincrônicas,
ou seja, na dimensão do tempo, como na dimensão do momento presente.
Trabalhando
com fenômenos humanos --- história, sociedade, economia, fenômenos
socioculturais --- instituiu magistralmente a teoria da complexidade dos
fenômenos, ao compreender que um fenômeno histórico-social não pode ser
compreendido e pensado a não ser tendo por base suas múltiplas determinações. A
singularidade desses fenômenos implica sua complexidade.
Marx
--- como todos nós ocidentais, pós aristotélicos --- assumiu o princípio de
identidade, como aquele que sustenta a nossa possibilidade de pensar
validamente cada um dos fenômenos da realidade, sendo eles simples ou
complexos, ciente de que os fenômenos histórico-sociais nunca são simples,
desde que sempre multideterminados, diacrônica e sincronicamente.
Hoje,
todos os profissionais das mais diversas áreas mantêm, em suas práticas
investigativas, a percepção e a compreensão de que a realidade é multideterminada.
Por exemplo, pesquisadores das áreas das ciências da natureza (física, química,
biologia), ao exercitar suas investigações, sempre tem presente que uma é a
variável causal do fenômeno que investigam, mas também tem consciência de que existem
outras variáveis (determinações) intervenientes. Por isso, para comprovar a atuação
da variável causal de um fenômeno (uma hipótese explicativa), inventam recursos
metodológicos de controle das variáveis intervenientes (aquelas que,
conjuntamente com a variável em investigação, atuam na determinação do fenômeno
em estudo).
Uma gripe, por exemplo, é causada exclusivamente
por um vírus presente num momento da vida de alguém? Claro que não. Ainda que o
vírus seja um fator determinante como “causador” da doença, existem múltiplos outros
fatores que, no conjunto, criam as condições para que a gripe se instale, tais,
como: estado geral de saúde da pessoa, disposições alérgicas, alimentação, espaço
saudável, etc... Para compreender e pensar cada um desses fatores, nos servimos
do princípio de identidade, desde que ele é fundante do nosso modo de pensar,
mas para compreender a gripe e os cuidados para sair de seu quadro de doença,
variados fatores terão que ser levados em conta (a complexidade).
Partindo
desse exemplo sobre a gripe, que se apresenta como um fenômeno biológico,
imaginemos agora as múltiplas determinações que se fazem presentes em
acontecimentos histórico, sociológicos, antropológicos; são extremamente
multideterminados.
A
abordagem desses fenômenos implicará em servirmo-nos da lógica dialética, como
recurso de abordagem da realidade, que leva em conta tanto cada elemento em si,
como a relação entre eles, como fatores constitutivos da realidade. O princípio
de identidade nos possibilita pensar de modo válido, a complexidade,
servindo-se do princípio de identidade, nos possibilita compreender um fenômeno
sob suas múltiplas determinações. A identidade nos possibilita compreender cada
um dos fenômenos, sejam eles simples ou complexos, de modo válido.
O
oposto de complexidade da realidade não é a identidade, mas sim a simplicidade
do fenômeno abordado. O princípio de identidade opera tanto com um fenômeno simples,
como com um fenômeno complexo. A habilidade do investigador, assim como daquele
que reflete sobre a realidade, será a capacidade de identificar se o fenômeno ao
qual se dedica é simples ou complexo e isso fará a diferença na compreensão final
da realidade. Não se poderá abordar fenômenos
complexos como se fossem simples; como também não se poderá abordar fenômenos simples
como se fossem complexos. Qualquer uma dessas duas vias, se praticadas com
exclusividade, trará distorções no que se refere à compreensão da realidade, que
possibilitará, consequentemente, modos práticos de agir no dia a da.
Então,
a lógica dialética, integrando a lógica formal, constitui o recurso que nos
possibilita desenvolver um verdadeiro “senso crítico”, onde cada fenômeno é
reconhecido em sua particularidade, mas, ao mesmo tempo, de forma articulada com
o todo. A abordagem simplista --- “um efeito, uma só causa (determinação)” ---
é restrita no que se refere a dar conta da complexidade de cada um dos
fenômenos da realidade, desde que, usualmente, existem múltiplas determinações
para um mesmo fenômeno observado.
Cada
fenômeno necessitará ser tratado na sua individualidade -- alguns serão mais
simples em sua constituição, outros serão mais complexos. Se desejamos
compreendê-los necessitamos levar esse fato em conta.
Então,
“ser crítico” (= tratar todo e qualquer fenômeno como simples) difere da
capacidade de servir-se de um “senso crítico” (= capacidade de tratar cada
fenômeno em sua complexidade).
No
primeiro caso, basta “ser contra” alguma coisa, opinar e agir desse modo, que,
usualmente, é automático e linear e, na maior parte das vezes, guiado por uma
carga emocional.
No
segundo caso, importa ter presente o nível de complexidade da realidade tendo
em vista compreender e agir diante de determinado fenômeno ou determinada
circunstância. Certamente que nos servirmos do senso crítico não tem nada de pragmático,
linear e automático; ao contrário, exige um processamento complexo, mental e
emocional.
A
seguir, veremos que, para cuidar da base comum para o currículo escolar nacional,
importa nos servirmos do “senso crítico” em não do “ser crítico”.
02. UM
OLHAR DE SENSO CRÍTICO SOBRE A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR
Com a compreensão de que, do ponto de vista epistemológico, o conceito de “senso crítico” difere da noção comum de “ser crítico”, podemos, então, com esse recurso metodológico, retornar à questão da base para o currículo comum nacional, abordada no post anterior, sob o título "Base comum para o currículo nacional".
Parto da necessidade da equalização formativa de
todos os educandos segundo um currículo nacional comum.
No post anterior, frente às múltiplas determinações
da realidade, no contexto histórico em que vivemos --- onde a cultura e a
ciência ampliam seu domínio sobre todo o planeta --- já não cabe mais uma configuração
da educação escolar centrada nos conteúdos locais, desde que os conteúdos
regionais e os universais também se fazem presentes na vida de todos e, desde
que apropriados, possibilitam ao sujeito uma compreensão mais abrangente da
realidade. Afinal, a cultura deixou de ser simples e exclusivamente local para ser
complexa e universal.
Estamos cientes de que existem ainda grupos humanos
“perdidos” em vários rincões do planeta, que ainda não se confrontaram com a
presença desses variados níveis da cultura e da ciência. Sem sombra de dúvidas,
é possível que essa fenomenologia ocorra. Contudo, vale observar que, mais dias
ou menos dias, esses povos serão confrontados pela necessidade de integração na
denominada sociedade civilizada, que detém uma compreensão sociocultural mais
ampla. Sua cultura local não deverá, de forma alguma ser dizimada, como já
ocorrera muitas vezes na história dos povos; contudo, sim, integrada, de modo
homeostático, com a cultura mais abrangente.
Qual seria a razão para que isso não devesse
ocorrer, assim como para que não viesse a ser levada em consideração, tendo
presente as múltiplas dimensões da cultura humana, hoje, já sinalizadas no post
anterior, em nossa prática de ensino?
Linearmente (“ser critico”), podemos nos apegar à
dimensão mais próxima, que está comprometida com a cultura local, comunitária,
todavia, tendo presente a complexidade da realidade, não há como obscurecer o
fato de que ela está envolvida por cultura regional e por uma cultura nacional
(que, afinal, está comprometida com a cultura universal).
Não há mais como ignorar aquilo que ocorre no mundo
da cultura e da ciência nos mais variados rincões do planeta. Não podemos ignorar
que a ciência busca compreensões e soluções que possam atender demandas de
todos os cidadãos do mundo, não necessariamente deste ou daquele local, ainda
que determinadas demandas possam ter nascido de necessidades emergentes de um
determinado local.
E, aqui retornam as considerações de Gramsci,
sinalizadas no post anterior, a respeito de como a apropriação da cultura, cada
vez mais abrangente, amplia o estado de consciência de quem processa essa
apropriação; fator que implica em ter uma “base comum nacional para o currículo
escolar”, o que significa garantir a todos os educandos as possibilidades de
aprender “a compreender o mundo”, a partir de um foco (uma abordagem) que
integre a cultura local, regional e nacional, isto é, que integre ao mesmo tempo o restrito e o abrangente,
tendo por suporte a idade e o nível de desenvolvimento de cada educando.
Isso significa que estamos oferecendo a todos os
educandos escolares de nosso país subsídios cognitivos e afetivos para a busca
da equalização social. Ao menos, através da educação, ofereceremos a todos os
educandos deste país um recurso que equaliza a todos em sua formação, ainda que
saibamos que em outras esferas da vida, como a econômica, estaremos ainda bem
longe da equalização.
Importa investir em alguma possibilidade de
equalização e nós educadores temos em nossas mãos a possibilidade de oferecer
aos nossos educandos esse recurso; o recurso de uma formação consistente que
tenha presente, ao mesmo tempo, a cultura local, regional e universal.
O “senso crítico”, como recurso metodológico para
compreender a necessidade de uma base comum para currículo nacional, e
consequentemente para a sua prática em sala de aula, é o “parceiro” de cada um
de nós educadores para oferecer a cada educando um recurso na busca da
equalização social; formação de todos com a competência necessária para a vida
no presente.
Se, dessa forma, praticarmos a educação escolar,
estaremos subsidiando nossos educandos para que, na vida, possam encontrar o
seu lugar, certamente com sua individualidade, mas, ao mesmo tempo, com uma
competência equalizada.
O segundo ponto que desejo ressaltar tem a ver com
as áreas de conhecimentos e com as disciplinas escolares propostas, como
componentes da base comum para o currículo nacional.
Farei um exercício de compreensão relativo ao ensino
de história, contudo importa praticar exercício semelhante em relação a todas
as áreas de conhecimentos e disciplinas.
Importa usar esse mesmo “senso crítico” --- isto é,
tendo presente as múltiplas determinações da realidade (a complexidade) ---
para abordar cada uma das áreas de conhecimento ou das disciplinas que comporão
o currículo nacional.
Tomemos, de início, a nossa história, exclusivamente
para proceder um modo de abordar a realidade. Historicamente, em nossa
formação, como povo, temos múltiplas determinações, tendo em nossas origens
tanto heranças indígenas, como europeias, como também africanas.
Quando os portugueses chegaram a esta terra, nos
inícios do século XVI, aqui viviam povos autóctones (vários), que ocupavam os espaços
geográficos, possuindo língua e cultura próprias. Por outro lado, os
portugueses, descobridores e colonizadores, trouxeram para cá a cultura
europeia com a qual estavam envolvidos, evidentemente sob a ótica portuguesa.
E, por último, tendo em vista o empreendimento colonizador, os portugueses
praticaram múltiplos procedimentos escravagistas, trazendo para cá africanos de
diversas etnias, com seus modos de ser e suas culturas. Os negros, ainda que escravizados
e submetidos, contribuíram com inúmeros componentes para formar nossa história
e nossa cultura. Posteriormente, especialmente no decurso do século XIX,
tivemos os movimentos de emigrantes de vários rincões do mundo para esta terra,
especialmente da Europa para cá: italianos, poloneses, alemães, açorianos,
entre outros.
Então, para compreender historicamente nossa
ancestralidade, e, consequentemente, formar dentro de cada um de nós um modo de
ser e de conviver com a totalidade dos nossos concidadãos, não podemos nos ater
com exclusividade nem somente às nossas heranças indígenas, nem só às nossas
heranças europeias, nem só às nossas heranças africanas, nem só às nossas
heranças decorrentes das emigrações europeias mais recentes.
Todos esses componentes históricos, com seus
detalhes, são importantes para que nossos estudantes tenham compreensão tanto deste
nosso país, como de nosso modo de ser, como também para traçar nossos desejos
de transformação. Todos esses componentes nos formaram e continuam a nos formar;
para compreender-nos, importa compreender essa história.
Observar que ensinar e aprender sobre nossa história
não tem por objetivo garantir que cada estudante “saiba cognitivamente” sobre
os acontecimentos que forjaram este país.
Com certeza, isso também; mas, importa que esses
estudos históricos possibilitem simultaneamente a formação do caráter, do modo
de ser dos nossos estudantes, aprendendo a conviver com todas essas nossas
heranças, sem minimizá-las ou excluí-las, como melhor ou pior. Não. Todas essas
heranças, com seus detalhes, nos constituíram e com elas vivemos em nosso
corpo, em nossa cultura, em nossa espiritualidade.
Todos, se queremos compreender e colaborar para este
país seja aquilo que deve ser --- um espaço onde todos podem viver de forma
saudável, confortável e de forma equalizada ---, necessitamos de estudar,
compreender e integrar em nosso caráter pessoal os ensinamentos que podem e
devem estar sistematizados nesses quinhentos anos de vida nesta terra, assim
como sistematizados nos anos e anos antecedentes das culturas que vieram desembarcar
em nossa história nacional; os povos indígenas, os povos europeus e os povos
africanos já tinham muito caminho andado, quando passaram a compor nossa história.
Então, necessitamos sim de conhecer os dados da história indígena, europeia e
africana, assim como da presença de todos eles na história de nossos quinhentos
anos de vida como país. São os ancestrais que nos constituíram. Como não conhecê-los?
Nenhuma dessas heranças, por si, explicam ou oferecem compreensão de nossa história, mas sim todas elas. Tomar uma ou outra dessas heranças, como "a nossa herança" seria linearizar nosso passado histórico, seja qual for dessas heranças aquela que seja assumida como única, desde que as três estão na base da nossa constituição como país.
Nenhuma dessas heranças, por si, explicam ou oferecem compreensão de nossa história, mas sim todas elas. Tomar uma ou outra dessas heranças, como "a nossa herança" seria linearizar nosso passado histórico, seja qual for dessas heranças aquela que seja assumida como única, desde que as três estão na base da nossa constituição como país.
Acredito que, nesse contexto, necessitamos,
criticamente, de nos servimos dos quatro objetivos da educação para o século
XXI, estabelecidos pela UNESCO no alvorecer deste século: (01) aprender a
conhecer, (02) aprender a fazer, (03) aprender a viver juntos, (04) aprender a
ser.
Creio que importa --- usando senso crítico --- que
exercício semelhante de entendimento e reflexão seja realizado em relação a
cada área de conhecimentos ou a cada disciplina escolar que vier a compor a
base comum do currículo escolar nacional. Nada deve ser excluído, mas tudo
compreendido e integrado.
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