Cipriano Luckesi
Contato --- ccluckesi@gmail.com
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No texto anterior
deste blog, estive investindo em refinar os conceitos dos atos de examinar e
avaliar na escola, mostrando que na base de ambos está o diagnóstico e que
aquilo que os distingue é o uso que se faz dos resultados do ato avaliativo. No
presente texto, pretendo refinar um pouco mais as questões dos conceitos da
avaliação, investindo na especificidade da tomada de decisão e, consequente,
investimento na ação.
Importa observar
que esses refinamentos conceituais, que estou propondo, não invalidam, de forma
alguma, aquilo que já fizemos no passado. Isso refere-se ao meu caso, como
pesquisador da área da avaliação, assim como de todos os outros autores que tem
investido em compreender essa área de conhecimentos e de atuação, como também
dos educadores deste país. Refinar conceitos significa a possibilidade de
utilizá-los de forma mais específica e mais consciente no cotidiano de cada um
de nós. Somente isso.
Retomemos o tema
da “tomada de decisão”. Todos os dias e a todos os momentos, em nossa vida
cotidiana, estamos tomando decisões e, consequentemente, investindo em ações,
tendo como base um ato avaliativo. Nenhuma de nossas escolhas e decisões
ocorrem sem um ato avaliativo, por mais inconsciente e corriqueiro que ele
seja. À medida que os atos avaliativos nos subsidiam, escolhemos, tomamos
decisões e agimos.
Isso ocorre à
semelhança do modo de funcionamento do nosso sistema nervoso, que, como
“central administrativa de nossas vidas”, está permanentemente investigando o
funcionamento de todos os nossos sistemas corporais e, em consequência, tomando
decisões, assim como procedendo atos que compensem as carências emergentes,
instante a instante, no nosso dia a dia.
Nosso sistema
nervoso é incansável nessa perspectiva. Dia e noite, está alerta investigando a
qualidade de tudo o que ocorre em nosso corpo, buscando e realizando as compensações
necessárias, a fim de que a vida prossiga no ritmo mais satisfatório possível.
O sistema nervoso autônomo age dessa forma, nos permitindo prosseguir na vida.
Na maior parte das vezes nem mesmo sabemos que ele age dessa forma, sempre na
perspectiva de manter o equilíbrio de nosso corpo. Os atos de decidir e
investir na busca do sucesso são fundamentais na vida humana.
Neste texto,
desejo continuar refinando conceitos e compreensões sobre o ato de avaliar e
seus desdobramentos, no caso, a tomada de decisão e a necessidade dos
investimentos dela decorrentes. O ato de avaliar, em todas as suas
manifestações, subsidia uma tomada de decisão, que devem conduzir a novas e
reiteradas ações tendo em vista viabilizar soluções satisfatórias, seja em
nosso corpo, seja em nossas relações com o mundo no nosso entorno, através de
atividades construtivas.
Primeiro,
retomaremos o conceito do ato de avaliar, a fim de, mais uma vez, nos
apropriamos de seu algoritmo, e, a seguir, retomaremos a compreensão da tomada
de decisão, de modo especial naquilo que toca à prática educativa.
O ATO DE AVALIAR
a) O ato de avaliar
O ato de avaliar,
como já expressei em textos anteriores deste blog, assim como em outras
publicações, é um ato de investigar a
qualidade da realidade. Enquanto a ciência investiga “qual é a estrutura e
como a realidade funciona”, a avaliação investiga “qual a qualidade da
realidade”.
Ambos são atos
investigativos e, por isso, nos seus âmbitos de atuação, revelam facetas da realidade e, dessa forma, subsidiam decisões
subsequentes. No caso, a ciência subsidia a tecnologia (compreendida em sentido
amplo) e a avaliação subsidia as múltiplas e variadas tomadas de decisão, que
ocorrem em diversa áreas da vida humana, usualmente, tendo em vista sua
satisfatoriedade.
Iniciemos por compreender
a qualidade como fundamento da
investigação avaliativa, o que implica, por sua vez, em compreender a
diferenciação entre fato e qualidade; compreensão esta que pode ser elucidada
através da relação entre as categorias gramaticais do substantivo e do adjetivo,
conteúdo que aprendemos desde que ingressamos na escola, na infância de cada um
de nós.
Gramaticalmente,
se conceitua que o “substantivo diz aquilo que a coisa é”, e que “o adjetivo
qualifica o substantivo”; o substantivo expressa a configuração do objeto
naquilo que ele é (uma descritiva), e, o adjetivo agrega-lhe uma qualidade
(qualifica a realidade).
Quando, por
exemplo, se diz “mulher”, configura-se substantivamente
o ser humano do sexo feminino, “descreve-se” a realidade. Porém, quando se diz
“mulher bela”, adjetivamente, agrega-se
a esse ser a qualidade da beleza. A qualidade “bela” não modifica em nada a
substância “mulher”; continua a ser mulher, mas, agora, com uma qualidade que
lhe fora atribuída --- a beleza.
O termo
substantivo --- que tem sua origem latina em sub-stare --- expressa aquilo que “sub-está”, que é base, que é
essência e, dessa forma, descreve a realidade; o termo adjetivo --- que também
tem origem latina --- decorre da junção dos termos ad-jacere, que expressa aquilo que está “lançado junto”, isto é,
que qualifica a realidade. Epistemologicamente, se diz que “o ser é” e “o valor
vale”. Um é substância, o outro é qualidade, que, por si, não tem substância,
mas agrega-se à substância.
Conceitualmente,
então, o ato de avaliar é um ato de investigar a qualidade da realidade e, para
isso, importa uma metodologia de investigação, como se segue.
b) Prática metodológica da investigação avaliativa
A investigação da
qualidade da realidade se dá, metodologicamente, pela atribuição de qualidade à
realidade, que ocorre da seguinte maneira: primeiro, (01) uma descritiva da
realidade, através de uma coleta rigorosa de dados, que garante sua configuração,
e, a seguir, (02) por uma comparação da realidade configurada com um padrão de
qualidade assumido como parâmetro (padrão de qualidade).
Retomando o
exemplo da “mulher bela”, de um lado, (01) deve ocorrer a observação e a
descritiva dos dotes físicos e/ou psicológicos dessa determinada mulher e, a
seguir, (02) processar a identificação da sua qualidade, através da comparação
da suas descritiva com um determinado padrão de beleza, que é assumido
circunstancialmente, em termos de lugar e tempo, como “mulher bela”, o que
permite afirmar que ela é “uma bela mulher”.
Devido expressar
uma posição de “não-indiferença” em relação à realidade, uma qualidade pode ter
dois polos possíveis, tanto pode ser positiva, como negativa. Para a qualidade,
não existe a possibilidade de um “ponto zero”, um “ponto de indiferença”; ou se
tende para o lado positivo ou para o lado negativo. Enquanto a substância,
expressa pelo substantivo, se dá na posição de “indiferença” (ponto zero), a
qualidade, expressa pelo adjetivo, se dá pela “não-indiferença”, ou seja,
variando entre os extremos do positivo e do negativo, sempre tendo como
referência um determinado padrão de qualidade.
Padrões de
qualidade diferentes relativos a uma mesma realidade, assumidos em momentos
históricos diferentes, qualificam a realidade também de modo diferente. Certamente
que o padrão de beleza feminina hoje não equivale ao padrão de beleza feminina
no período do Renascimento das artes na Europa.
De modo semelhante, ocorre em qualquer processo de investigação da
qualidade de um objeto no contexto da vida humana. No que se refere ao ensino,
as prioridades curriculares, que sinalizam padrões de qualidade desejados,
sofrem variações no tempo e no espaço. Daí a necessidade de se ter claro e
preciso o padrão de qualidade a ser levado em conta num determinado ato avaliativo,
tendo em vista evitar as manipulações emocionais do avaliador.
Em síntese, a
avaliação, como investigação da qualidade da realidade, implica, de um lado,
(01) em uma descritiva da realidade empírica (nesta exposição, representada
pelo substantivo), e, de outro, (02) um padrão de qualidade circunstancial, ao
qual a realidade descrita é comparada e, consequentemente, ajuizada (nesta
exposição, representada pelo adjetivo).
Caso a realidade
preencha o padrão de qualidade estabelecido, temos uma qualidade positiva; caso
a realidade não preencha os requisitos do padrão de qualidade, temos uma
qualidade negativa. Essa compreensão epistemológica sustenta os atos
avaliativos em qualquer setor da vida humana, o que implica que a avaliação
será praticada sempre com esse algoritmo metodológico (ver nota 01).
c) Aplicação da compreensão conceitual da avaliação e
de sua metodologia investigativa à prática pedagógica.
De forma
semelhante, deverá ocorrer a prática da avaliação da aprendizagem --- assim
como de outras práticas avaliativas na educação, isto é, (01) uma coleta de
dados, no caso, sobre a realidade da aprendizagem do estudante, que configure
sua aprendizagem, e (02) uma atribuição de qualidade ao seu desempenho na
aprendizagem, comparando-se a descritiva obtida (com figuração da realidade) com
o padrão de qualidade desejado, já estabelecido no currículo escolar,
transformado em planos de ensino.
Haverá, pois
necessidade de rigor metodológico na coleta de dados, como também cuidados no
processo de atribuição de qualidade ao desempenho do estudante, em termos de
retratação da realidade, como também evitando subjetivismos na qualificação da
realidade. Os subjetivismos, vinculados aos nossos estados emocionais pessoais,
poderão tanto na coleta de dados como em sua qualificação, distorcendo a
efetiva qualidade da realidade (a respeito desse tema, ver meu livro: Cipriano
Carlos Luckesi, Avaliação da
aprendizagem: componente do ato pedagógico, Cortez Editora, São Paulo)
AVALIAÇÃO, TOMADA DE DECISÃO E INVESTIMENTO
a) A tomada de decisão
O ato de avaliar,
em si, se encerra com a revelação da qualidade da realidade, pelo uso dos
recursos metodológicos indicados acima. O conhecimento da qualidade da
realidade subsidia o gestor a tomar variadas decisões, como vimos no texto
anterior deste blog. A tomada de decisão, com base nos resultados do ato
avaliativo, não pertence ao ato de avaliar; assenta-se sobre os dados da avaliação,
mas está para além deles.
Quando, no
passado, em variados escritos meus, como também em variados escritos de outros
autores, a avaliação foi definida como “um juízo de valor (ou de qualidade)
sobre dados relevantes, para uma toma de decisão”, essa definição já indicava
aquilo que estou explicitando neste momento, isto é, que a “tomada de decisão”
não pertence ao ato de avaliar, mas sim à decisão do gestor que toma, a partir
dele. Porém, como essa definição vinha expressa numa frase única, com três
componentes --- (01) um juízo de valor (ou de qualidade); (02) sobre dados
relevantes; (03) para uma toma de decisão ---, parecia que a “tomada de
decisão” fazia parte do ato de avaliar. No entanto, não faz; somente assenta-se
sobre ele.
Usualmente, então,
a tomada de decisão foi assumida como
parte do processo avaliativo, todavia, de fato, conceitual e
epistemologicamente, não lhe pertence. A tomada de decisão é um ato da responsabilidade do gestor da ação. É
ele que --- com base na qualidade revelada da realidade --- toma a decisão.
No exemplo que
utilizamos anteriormente a qualidade “bela” atribuída a uma determinada mulher,
a revelação da qualidade da beleza de uma mulher pode, mas, não necessariamente
conduzirá a uma tomada de decisão, desde que o objeto do ato avaliativo, no
caso, não está comprometido com um curso de ação. Simplesmente mulher é bela! É
bem provável que a atribuição da qualidade “bela” a essa determinada mulher não
subsidiará nenhuma “tomada de decisão”, simplesmente uma explicitação de sua
beleza.
Contudo, não há
como negar que o reconhecimento da beleza dessa mulher implicará numa “tomada
de posição” (diferente de “tomada de decisão”) positiva em relação à sua beleza,
que poderá --- também --- servir para que o formulador desse juízo tome a
decisão de cortejar essa referida mulher; mas, não necessariamente, desde que,
no caso, não se está tratando um curso de ação, que, por si, tem como destino
produzir resultados positivos.
No contexto dos projetos de ação, a “tomada de decisão”
é crucial; o seu gestor tem por objetivo o sucesso de sua atividade, então, a
avaliação lhe subsidia as decisões a tomar, sob essa ótica.
À medida que a
investigação avaliativa revela a qualidade da realidade, o seu gestor não tem
outra possibilidade a não ser posicionar-se a respeito dela, seja positiva ou
negativamente. Ter ciência da qualidade dos resultados de sua ação mobiliza o
gestor, seja para gratificar-se nela, seja para sentir-se incomodado com os
resultados insatisfatórios, o que implicará na decisão e na prática de mais
investimentos na busca do sucesso.
Em síntese, a tomada de decisão pertence ao gestor
da ação, nunca ao ato de avaliar. Então, quando, para definir a avaliação, se
usa o conceito --- “a avaliação é uma atribuição de qualidade, com base em
dados relevantes da realidade, tendo em
vista uma tomada de decisão” ---, a “tomada de decisão” está para além do
ato de avaliar propriamente dito, que, por si, se encerra com a revelação da
qualidade da realidade. A avaliação se expressa como uma parceira --- uma
aliada fiel --- do gestor em suas decisões; porém, importa entender que quem
decide, em todas as ocasiões, é o gestor.
b)
Investimento
A “tomada de
decisão” implica num passo à frente, se, efetivamente, se deseja qualidade mais
satisfatória para os resultados da ação em curso. Investir significa atuar para
que os resultados desejados de uma ação sejam alcançados, com a qualidade desejada.
Recentemente, com
a publicação dos resultados dos índices da qualidade da educação no Ensino
Básico, tenho observado nos meios de comunicação as mais variadas reações de
gestores administrativos da educação, nos diversos níveis hierárquicos, como de
educadores em geral. Os índices estatísticos do IDEB revelam a qualidade dos resultados
do sistema de ensino, seja por escola, por município, estado ou país. Tornar
esses resultados mais satisfatório dependerá de “tomada de decisão” nessa perspectiva
e, a seguir, tradução dessa decisão em prática diuturna.
O mesmo correrá na
sala de aula, espaço onde o professor é o seu gestor. Aprendizagem
insatisfatória, revelada nos processos avaliativos, implicará em mais
investimentos na perspectiva de resultados mais satisfatórios venham a ser
alcançados.
Fui um criança
multi-repetente e deixei de sê-lo no dia que um professor de língua portuguesa
disse a mim e a outros colegas de infortúnio: “Se vocês forem bem ensinados,
aprenderão. Eu vou cuidar de vocês”. Nunca mais, em minha vida, fui repetente.
Tomada de decisão
e investimentos na direção certa produzem efeitos positivos, com certeza!
Trabalhoso? Acredito que sim, porém, gratificante.
_________
Nota 01 – Existe
uma área de conhecimentos na área da Filosofia que se denomina Axiologia ou
Teoria dos Valores, que cuida do estabelecimento dos conceitos e relações entre
“ser e valor” e, pois, entre “fato e qualidade”; uma epistemologia a respeito
desses fenômenos e suas relações.
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