quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

115- COMPREENDENDO O ATO DE AVALIAR EM EDUCAÇÃO... MAIS UMA VEZ

Cipriano Luckesi
Contato - ccluckesi@gmail.com

INTRODUÇÃO

Já são muitos os anos que trabalho e investigo na área da avaliação em educação. Iniciei em 1968. Ao longo desses anos, muitos conceitos foram ganhando mais precisão epistemológica, como também metodológica e prática.
Neste texto, pretendo dar um pouco mais de precisão epistemológica à questão dos usos dos resultados da avaliação em educação, tema já mencionado e, de alguma forma, já trabalhado no texto imediatamente anterior, publicado neste blog.
Poderia abordar a questão do uso dos resultados do ato de avaliar em várias outras áreas da ação humana; contudo, como minha área de atuação é a educação, ater-me-ei a ela.
No texto, a seguir, retomo um pouco da história dos conceitos abordados, usualmente utilizados no cotidiano de nossas lides educativas --- exames e avaliação ---, e busco alguma precisão epistemológica, procurando compatibilizar o conceito com a realidade que ele expressa.
Iniciei essa tarefa já em alguns textos anteriores a este. O leitor poderá encontrar abordagens repetidas, porém necessárias, para que este texto se configure no seu todo.


1. UM POUCO DE HISTÓRIA PARA COMPREENDER ONDE ESTAMOS

A escola, que conhecemos hoje, como uma instituição de ensino, foi organizada no decurso do século XVI, sendo composta por uma administração educativa e por grupos de estudantes reunidos em turmas e, a frente dela, um professor para ensinar coletivamente a todos.
O ensino, anterior a esse momento histórico, praticamente, era individualizado, no âmbito das Oficinas de Mestres e Aprendizes, sempre tendo um mestre à frente. Só para lembrar, Leonardo Da Vinci frequentou a Oficina de Verrocchio --- propriamente: Andrea di Francesco di Cione, conhecido como Andrea del Verrocchio. Em cada Oficina ingressam poucos aprendizes, por isso, eram individualmente acompanhados pelo seu mestre.
Então, no contexto da escola que se instala no Ocidente com os eventos da Modernidade --- cujo marco histórico é o Século XV ---, após um ano letivo, comumente, são realizadas provas, tendo em vista a verificação da aprendizagem dos estudantes, classificando-os em aprovados, reprovados, tendo em vista o prosseguimento de seus estudos em séries ou classes subsequentes, segundo a estrutura curricular adotada. Ainda, no momento histórico contemporâneo, continuamos com essa prática, acrescida, evidentemente, com de outras minúcias. Contudo, o pano de fundo continua sendo esse. Todos nós, que passamos pela escolaridade, vivemos isso.
Na Ratio Studiorum, documento publicado pela Ordem dos Padres Jesuítas, em 1599, que estruturou a pedagogia em seus Colégios, esparramados pelo mundo, quanto à aprovação ou reprovação do estudante.
Quando a essa prática, do documento propunha duas atividades: uma de acompanhamento do estudante durante o ano letivo, cujos resultados deveriam ser anotados na Pauta do Professor (uma caderneta) e levados em conta por ocasião dos exames, ao final do ano letivo, quando se decidia pela aprovação ou reprovação do estudante; podendo ainda chegar-se a uma terceira posição --- o médio ---, que, sendo uma classificação duvidosa, possibilitava o estudante iniciar o ano letivo seguinte na classe imediatamente superior àquela que frequentava; caso apresentasse condições de prosseguir nessa classe, permanecia nela, mas, caso se mostrasse em condições insatisfatórias para tanto, retornava à classe anterior.
A Pauta do Professor continha os registros realizados pelo professor do estudante a respeito de seus caminhos, sucessos e fracassos na aprendizagem no decurso do ano letivo, decorrente dos procedimentos e processos de ensino-aprendizagem.
Os exames, por sua vez, que ocorriam ao final do ano letivo, eram realizados por uma Banca Examinadora, constituída por três membros: pelo Prefeito de Estudos da Escola (um administrador acadêmico da escolar; vale observar que o professor do estudante não podia fazer-se presente na Banca Examinadora) e por mais dois professores alocados em outra ou outras escolas.
Essa Banca tinha por tarefa realizar tanto os exames escritos, elaborando e corrigindo as provas, que eram aplicadas na turma de estudante pelo Prefeito de Estudos, como também era responsável pelo exame oral, com perguntas e situações-problema apresentadas ao estudante, que também, de forma oral, deveria responder ou realizar as tarefas propostas.
O desempenho e a respectiva classificação do estudante nesse ritual permitia ser aprovado ou reprovado no que se referia ao prosseguimento dos estudos na classe subsequente.
Esse ritual, ainda que com nuances e configurações diferenciadas, permanece sendo praticado em todos os níveis de ensino até o presente momento histórico, em todos os recantos geográficos do Ocidente, assim como em muitos outros cantos do Oriente.
Todos nós o conhecemos, seja pela experiência de termos sido estudantes, seja devido ocuparmos o lugar professores. Esse ritual tornou-se um senso comum ao longo da história moderna.
Já do lado protestante, especialmente nas configurações pedagógicas propostas por John Amós Comênio --- o mais importante pedagogo dessa orientação religiosa, nos finais do século XVI e inícios do XVII, que sistematizou orientações pedagógicas, publicadas em sua obra de 1632, intitulada Didática Magna ou da arte de ensinar todos totalmente ---, está definida a importância dos exames escolares, posteriormente, redefinidos na obra Leges Scholae bene ordenatae, do ano de 1654, na qual estão propostos exames ao final de cada aula, ao final de cada dia de aula, ao final de cada semana, de cada quinzena, de cada mês, ao final de cada semestre e ao final do ano letivo. E, ainda propôs um exame a ser praticado junto a todos os estudantes pelo Scholarca, um personagem nomeado por cada município para acompanhar a qualidade do ensino e aprendizagem em cada escola, como instituição.
Dessas experiências dos inicios da organização escolar, no alvorecer da modernidade, emergiu a prática pedagógica mais centrada nos denominados exames escolares que, propriamente, no ensino-aprendizagem dos educandos.
Em tempos passados, final dos anos 1980 e inícios dos anos 1990, escrevi um texto, que se encontra publicado num livro de minha autoria intitulado Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições, Cortez Editora, São Paulo, 22ª edição, cujo título é “Avaliação da aprendizagem escolar: apontamentos sobre a pedagogia do exame”, páginas 35 a 44, onde demonstro a polarização dos exames em nossas práticas do ensino-aprendizagem, seja por parte do professor, dos estudantes, dos pais, da direção da escola e da sociedade.
Todos têm sua atenção voltada para os exames escolares. Os professores ameaçam os estudantes com os exames --- “Estudem, caso contrário, verão o que acontecerá no dia dos exames”. Os pais perguntam: “Meu filho, já estudou para as provas”? “Que nota tirou”? Um estudante comenta com o outro: “Rapaz, não estou muito bem para a prova de hoje”. E, assim, por diante.... Todos polarizados pelas provas, que se traduzem em exames.
Então, do século XVI ao século XX, nenhum autor criou outra denominação para essa prática escolar. Nesse período, e ainda hoje, nos servimos da denominação utilizada pelos jesuítas: “exames escolares”.
Em 1930, um jovem educador norte-americano, Ralph Tyler, nascido em 1902 e falecido em 1994, preocupado com os altos índices de reprovação escolar nos Estados Unidos, naquele momento, --- em torno de 70% dos estudantes ---, passou a utilizar a denominação de “avaliação da aprendizagem” para insistir no uso “diagnóstico” dos resultados da investigação da qualidade das aprendizagens dos estudantes, com a intenção de que os educadores pudessem compreender que, quando um estudante ainda não aprendeu um determinado conteúdo ou habilidade, vale a pena investir mais e mais nele, até que aprenda.
A prática daquilo que ele denominou de “avaliação da aprendizagem”, então, serviria para denunciar que o estudante --- ainda --- não aprendeu aquilo que deveria ter aprendido, como também um aleta ao educador para que invista mais e mais na aprendizagem do seu educando, caso ele efetivamente tenha o desejo de que aprendam aquilo quem está ensinando.
Essa compreensão de Tyler, ao longo do tempo, teve repercussões teóricas tanto nos Estados Unidos como em outras partes do mundo, inclusive no Brasil, quarenta anos depois, a partir do final dos anos 1960 e inícios dos anos 1970.
No final dos anos 1950 e 1960, nos Estados Unidos, especialmente com os largos investimentos em educação ocorridos nesse país pós o lançamento do Sputinik I, por parte dos russos. A Rússia, um país medieval no início do século XX, em quarenta anos, desenvolvera ciência e tecnologia com capacidade de colocá-la como o primeiro país a enviar um satélite artificial no espaço.
Então, o governo norte-americano, nas variadas disputas internacionais, considerando que a educação não estava dando conta de criar cientistas e tecnólogos suficientes, competentes e criativos, investiu financeiramente muito em educação e, ao mesmo tempo, tendo em vista verificar e controlar os efeitos desses investimentos, no contexto da cultura educativa desse país, desenvolveram-se múltiplos modelos de avaliação, tendo em vista verificar os efeitos de tais investimentos na vida social. Também se desenvolveram metodologias tanto para o ensino como para a avaliação, tendo em vista tornar as práticas de ensino-aprendizagem mais eficientes.
No Brasil, as repercussões desses movimentos em torno da eficiência do ensino e das práticas avaliativas chegaram pelo final dos anos 1960 e inícios dos anos 1970. Tivemos a Reforma da Universidade em 1968 e a Reforma do Ensino Básico em 1971 e, junto com essas reformas, todo um movimento de eficientização do ensino, em função do que a avaliação se tornava recurso fundamental.
Importa observar que, na escola regular, o movimento pró avaliação não deu conta de ultrapassar as práticas dos exames escolares, no caso, já seculares. Então, hoje, em nossa cultura pedagógica, abordamos e dialogamos sobre a avaliação, mas continuamos, no cotidiano, a praticar os velhos exames escolares jesuíticos e comenianos.
Então, no decurso do século XX e no presente momento, seguimos nos servimos das denominações e dos conceitos de exames escolares, como classificatórios, e avaliação, como diagnóstica; modo de agir e pensar como ainda plenamente vigentes em nossas cotidianas práticas pedagógicas escolares.
Até mesmo desenvolvemos terminologias agregadas aos termos “exames” e “avaliação”, tais como “exames escolares”, “avaliação classificatória”, “avaliação diagnóstica”, “avaliação processual”, “avaliação contínua”, “avaliação mediadora”, “avaliação dialógica”, “avaliação dialética”, entre outras...
Todas elas na perspectiva de esclarecer e passar e, consequentemente, servir-se da avaliação como um recurso subsidiário de uma ação bem-sucedida em educação. É em função dessa multiplicidade terminológica, que tenho me dedicado a buscar mais precisão epistemológica para os conceitos, na expectativa de uma melhor compreensão teórica sobre avaliação possa permitir também praticas diárias mais consistentes.
Pessoalmente, participei de todos esses movimentos nos últimos quarenta anos da educação no país. Usei de todas as expressões e entendimentos disponíveis em nossa cultura e em expressões culturais de outros países, acima relembradas. Ultimamente, tenho me dedicado a refinar os conceitos no âmbito da avaliação em educação e este texto também faz parte dessas tentativas. O leitor poderá verificar os últimos textos publicados aqui neste blog. E, nesse texto insisto, mais uma vez, nessa busca de refinamento dos conceitos nessa área de trabalho.


2. APRIMORAMENTO DOS CONCEITOS RELATIVOS AO ATO DE AVALIAR EM EDUCAÇÃO

1. A respeito do conceito do ato de avaliar

Todos aqueles que já entraram em contato com os textos que escrevi, em especial, sobre avaliação da aprendizagem, já se depararam com exposições diferenciando “exames escolares” de “avaliação da aprendizagem”, em conformidade com os dados que indiquei na primeira parte deste texto. Os exames como classificatórios e excludentes e a avaliação como diagnóstica e inclusiva.
Mais recentemente, tenho me perguntado sobre a justeza epistemológica desses conceitos, assim como a respeito da compreensão conceitual do ato de avaliar, que assimilei de Stuffblean, que define a avaliação como “um juízo de valor (qualidade) sobre dados relevantes, para uma tomada de decisão”.
A medida que venho apurado mais e mais os conceitos sobre avaliação, passei a compreender que o ato de avaliar é um “ato de investigar a qualidade da realidade”, encerrando-se aí o seu algoritmo.
Diante dessa constatação, fica claro que a “tomada de decisão” não pertence propriamente ao ato de avaliar, mas sim à atitude do gestor de uma ação que, com base na qualidade da realidade identificada pela investigação, “decide” o caminho a tomar, tais como: a) “deixar as coisas como estão e nada fazer”, ou b) “dar-se por satisfeito com a qualidade da realidade identificada pela investigação” ou ainda, c) “reconhecer que a qualidade da realidade está insatisfatória e decide investir mais e mais na perspectiva de produzir mais satisfatoriedade”.
Essa compreensão mostra que a avaliação é uma investigação e, como tal, “revela a qualidade da realidade”, podendo, então, subsidiar decisões do gestor da ação, contudo, ela, por si, não resolve nada; ela simplesmente produz um conhecimento da qualidade da realidade. Quem toma a decisão é o gestor da ação, com base na qualidade revelada da realidade, fator que faz compreender que o ato de avaliar se encerra com a qualificação da realidade.
Com essa compreensão do ato de avaliar, que acredito ser epistemologicamente mais justa e adequada, coloca nas mãos do gestor a decisão e o investimento. O ato de avaliar revela a qualidade da realidade. Ponto final. Cabe ao gestor tomar decisão e investir.
Já há muito falamos de “avaliação em educação” --- de os inícios dos anos 1970 ---, e, parece, que ficamos a acreditar que ela, por si, resolveria os impasses educacionais que vivemos. No, então, não resolve e a razão é simples: ela é uma investigação e a função de um a investigação é simplesmente revela a realidade. Nada mais que isso. Com essa revelação em mãos, é o gestor que produzirá resultados. Na sala de aula, o educador é o seu gestor e, então, deverá ser ele o divisor de águas entre a ineficiência e a eficiência da ação educativa. Em outras instâncias educativas, outros gestores serão responsáveis pela produção dos resultados desejados.

1..2. A respeito dos usos dos resultados ato de avaliar

O ato de avaliar, sempre foi somente isso --- “investigar a qualidade da realidade” ---, desde que o ser humano emergiu na terra.
Contudo, foram realizados usos diferenciados dos resultados dessa prática investigativa. No caso da educação organizada institucionalmente, ao ”uso classificatório dos resultados” dessa prática investigativa foi atribuída a denominação de “exames escolares”. Mais recentemente --- na primeira metade do século XX, ---, Ralph Tyler resolveu batizar o “uso diagnóstico dos resultados” dessa prática investigativa de “avaliação da aprendizagem”. E, então, hoje, cotidianamente, utilizamos essas denominações como se fossem absolutamente diferentes e até opostas. Eu, pessoalmente, também já cometi esse engano, até mesmo em meus escritos. A pratica investigativa é a mesma, todavia, os usos dos resultados da investigação é que são diferentes e até opostos.
Recentemente, tenho entendido que os jesuítas no século XVI, assim como os comenianos, também praticaram avaliação, contudo, usaram e propuseram usar os resultados dessa prática investigativa de modo “classificatório”, denominando esse uso de “exames escolares”. Por outro lado, tenho compreendido que Ralph Tyler desejou e propôs que o uso dos resultados do ato avaliativo em educação tivesse um uso “diagnóstico”, tendo denominado essa prática de “avaliação da aprendizagem”.
Em síntese, esclarecendo epistemologicamente o conceito de “avaliar”, podemos compreender, sim, que tanto por trás daquilo que denominamos “exames escolares”, como por trás daquilo que denominamos “avaliação da aprendizagem”, está a “investigação avaliativa”, que se encerra no momento que essa prática investigativa “revela a qualidade da realidade”; fator que propicia os dois usos básicos de sua revelação: um uso classificatório e um uso diagnóstico. E, mais, tanto um quanto outro desses usos propicia desdobramentos.
O uso classificatório se expressa numa escala de qualidades e pode se desdobrar em premiação e castigo; o uso diagnóstico propicia bases para as decisões construtivas. O uso classificatório encerra um processo de ação; o uso diagnóstico abre as portas para prosseguir. O uso classificatório tem desdobramentos excludentes --- alguns ficam, outros vão; o uso diagnóstico tem desdobramentos inclusivos --- sempre os resultados podem ser melhores.

Concluindo - Vale a pena rever esses conceitos.




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