segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

117 - PARA QUÊ AVALIAR?

Cipriano Luckesi
Contato --- ccluckesi@gmail.com


Recentemente participei de um evento, cujo tema a ser abordado era a pergunta: “Para quê avaliar?” A resposta veio-me de imediato: “Para produzir resultado satisfatório da ação que estivermos a realizar”.
De fato, é esse o objetivo a ser alcançado ao se praticar atos avaliativos no decurso de uma ação. O ato de avaliar é um “ato de investigar a qualidade da realidade”, fato que implica que caberá ao gestor da ação decidir o uso que fará dos resultados desse ato investigativo. A avaliação, como ato investigativo, “revela” a qualidade da realidade; cabe ao gestor decidir como usará esse resultado.
Isso ocorre sempre que um ato avaliativo é praticado, seja na natureza, seja nas decisões pedagógicas ou administrativas, seja na vida em geral. A vida aposta no sucesso da ação, mas, para chegar nele, necessita prosseguir tomando ciência da qualidade daquilo que já produziu e, se necessário, decidindo como prosseguir: “já atingi um nível satisfatório com a ação, que estou executando”? Se sim, ok. Se não, que investimento novo irei fazer para atingir esse nível de resultado?
Nosso sistema nervoso opera dessa forma. Está em constante processo de investigação do estado de nossa temperatura, nossos hormônios, nosso sangue, nossa respiração... e, constantemente, nosso centro cerebral autônomo --- sem mesmo estarmos cientes de que decisões está tomando --- as realiza em busca restabelecer o equilíbrio de nosso organismo, quando seu sistema avaliativo revela algum desequilíbrio em nosso organismo.
Para nosso centro cerebral de decisões, sempre haveria equilíbrio; contudo, ocorre que, psicologicamente, tomamos decisões no dia a dia que nem sempre nosso centro cerebral consegue redirecionar ações necessárias para produzir o equilíbrio. Afinal, somos bem teimosinhos. Mas... ele tenta. Quando não consegue, produzimos pequenos desvios, tais como dor de cabeça, enxaqueca, alguma dormência, ou, por vezes, grandes desvios... O nosso cérebro, através de seu segmento autônomo, serve-se de um sistema autoregulativo, investigando a qualidade de tudo aquilo que ocorre em nosso corpo e, imediatamente, corrigindo desequilíbrios, sempre que possível. Um perfeito centro de avaliação e de tomada de decisões em busca da satisfatoriedade.
Por outro lado, vale observar que, no cotidiano, todos os seres humanos, como todos os outros seres vivos, “apostam no sucesso de sua ação”, sejam quais forem essas ações, e, em função disso, todos os atos avaliativos inconscientes ou conscientes, tendem a dar-lhes suporte para que consigam atingir os resultados desejados. Ninguém de nós, em nossa ação, deseja e/ou investe num resultado negativo. A vida e nós também desejamos sempre o sucesso. Agimos para obter sucesso em nossa ação, ainda que possamos não atingí-lo.
Os esclarecimentos acima referem-se ao uso natural do ato avaliativo. Contudo, no que se refere ao uso dos resultados do ato avaliativo pelo ser humano em suas ações, o que pode acontecer?
Nesse caso, são dois os usos possíveis dos resultados do ato avaliativo, que podem ser deliberadamente escolhidos pelo gestor da ação, que, no caso, pode ser uma ação que gera resultados para si mesmo (individuais) ou que gera resultados para um coletivo. Numa escola, como instituição, tanto importa investir nos resultados individuais (a aprendizagem dos estudantes), como nos resultados coletivos (o desempenho da escola como instituição).
Um dos usos possíveis dos resultados do ato avaliativo é o “uso classificatório”, que ocorre da seguinte maneira: com os resultados a respeito da “qualidade da realidade”, revelada pelo ato avaliativo, o gestor da ação, tendo presente uma “escala de qualidades”, decide classificar essa realidade em algum grau de uma escala de qualidades, que varia da mais positiva para a menos positiva. Esse uso classificatório dos resultados do ato avaliativo considera que esse objeto do ato avaliativo está plenamente construído com as características que está apresentando aqui e agora. Assume-se que esse objeto está pleno, inteiro, pronto. Então, só resta classificá-lo com base nos resultados de um ato avaliativo.
O outro uso possível dos resultados do ato avaliativo é o seu “uso diagnóstico”. O que significa isso? Ao invés de nos perguntarmos “em que lugar de uma escala de qualidades classifico este objeto de investigação”, pergunto, “essa qualidade revelada por essa realidade já é satisfatória”?
Caso a resposta seja positiva, não há necessidade de investir mais na busca da satisfatoriedade, desde que ela já fora atingida; mas, caso a realidade, através do ato avaliativo, não apresente a qualidade desejada e necessária, pode-se decidir investir mais e mais na busca do atendimento da satisfatoriedade desejada; como também, pode-se decidir “deixar as coisas como estão”, uma decisão nada saudável.
O uso classificatório da qualidade da realidade encerra a possibilidade da ação, desde que está aquilo que está sendo avaliado é classificado; mas, o uso diagnóstico sempre possibilita novos investimentos na busca da satisfatoriedade desejada, caso esse efetivamente seja o desejo e a decisão do gestor da ação.
Diante dessas considerações, vale à pena ver que, na história da educação, esses dois usos dos resultados do ato avaliativo sempre estiveram, de alguma forma, presentes, sabendo, porém, que predominou e tem predominado, em última instância, quase que de forma exclusiva, o uso classificatório.
Na pedagogia jesuítica, portanto, do lado católico, normatizada na obra “Ratio Studiorum”, publicada em 1599, configuraram-se as duas modalidades de uso dos resultados do ato avaliativo, acima discriminados.
De um lado, o uso diagnóstico --- configurado na “Pauta do Professor” ---, recurso que deveria ser utilizado pelo professor no decorrer do ano letivo, tendo em vista acompanhar o andamento de cada estudante em sua dedicação aos estudos e sua aprendizagem; e, de outro, o uso classificatório, praticado ao final de cada ano letivo pela Banca Examinadora, que deveria classificar o estudante em “promovido” ou “não-promovido” para a classe subsequente, tendo presente seu desempenho dos exames, juntamente com as considerações registradas na “Pauta do Professor”. Havia ainda a possibilidade de uma classificação em “médio”, que era assumida como uma qualidade duvidosa, razão pela qual o estudante passava a frequentar as aulas da classe subsequente sem ser matriculado nela; caso suportasse suas exigências, permanecia nela; caso não suportasse, retornava à classe anterior.
Com o decorrer do tempo, praticamente, nos sistemas de ensino nos países do ocidente em geral, sobreviveu quase com exclusividade o uso classificatório dos resultados do ato avaliativo. A “Pauta do Professor”, como recurso de acompanhando e auxilio ao estudante em sua aprendizagem, desapareceu. Permaneceram as provas com características bem diversas do rigor metodológico necessário à uma investigação avaliativa, como já sinalizei em diversas ocasiões neste blog, assim como nos livros que já tornei público..
Do lado protestante, John Amós Comênio, em sua obra “Didática magna”, também insistiu na orientação de que a aprendizagem tivesse prioridade em todos os atos do professor e da escola, contudo, não deixou de dar papel significativo ao uso classificatório dos resultados do ato avaliativo, através dos exames escolares, previstos na própria “Didática magna” (1632), como também na normatização  “Leis para a boa ordenação da escola” (1657). Comênio investiu menos que a “Ratio Studiorum” no uso classificatório dos resultados do ato avaliativo, porém, não deixou de dar-lhe um papel na prática pedagógica.
Do século XVI ao século XX, a orientação do uso classificatório dos resultados do ato avaliativo foi predominante e crescente com o passar dos anos, chagando quase que de modo exclusivo no seu uso em nossas escolas, até mesmo nos dias correntes do presente.
Em 1930, um jovem educador norte-americano, Ralph Tyler, à época, com 28 anos de idade, iniciou a apregoar a necessidade do “uso diagnóstico” dos resultados do ato avaliativo, tendo em vista garantir o sucesso da prática de ensinar nas escolas.
Sua recomendação era: “ensine alguma coisa, diagnostique a qualidade da aprendizagem efetuada; se a aprendizagem se manifestar satisfatória, siga em frente; se for insatisfatória, ensine de novo”. Dessa forma, Tyler propunha o “uso diagnóstico” dos resultados do ato avaliativo.
Da data de suas proposições aos nossos dias, já se passaram quase noventa anos e, ainda, estamos profundamente comprometidos com o “uso classificatório” dos resultados da avaliação: “aprovado/reprovado”; “nota 10,0, nota 2,0, nota 5,0” ... e outras mais. Esse é o modelo que predomina em nossas escolas, de norte a sul, de leste a oeste do país. Em outros países também, sendo que alguns já conseguiram sistemicamente ultrapassar esse modelo, tais como Canadá, Dinamarca, Finlândia e outros poucos.
O convite deste texto é para integrar aquilo que a história já nos ensinou como significativo para a efetividade saudável do ensino-aprendizagem em nossas escolas, afim de que todos aprendam os conte4údos e condutas necessários, estabelecidos em nossos currículos escolares. Mas, para além disso, até para além do necessário, aprender a usar diagnosticamente os resultados dos atos avaliativos em sala de aula, como subsídio para nossas decisões na perspectiva de construir, junto aos nossos estudantes, ao mesmo tempo as aprendizagens necessárias e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de suas capacidades criativas.
Então, vamos lá. Vamos aprender e efetivamente praticar o “uso diagnóstico” dos resultados do ato de avaliar no decurso de nossas aulas no andar do ano letivo, tendo em vista que nossos estudantes aprendam o necessário, e, para além do necessário, aprendam a ser criativos, responsáveis, de tal forma que possam buscar no meio social a sua equalização. Todos têm direito a partilhar dos bens sociais.
A educação não é e nem será o “único” meio para os processos de equalização social, sonhado e desejado por todos nós, contudo, com certeza, será um recurso fundamental, que está em nossas mãos, de educadores, para nos servirmos dele da forma mais significativa possível. Usar diagnosticamente os resultados do ato avaliativo na prática do ensino-aprendizagem está em nossas mãos fazê-lo, que, com certeza, subsidiará muitos e muitos resultados positivos, seja para a escola como instituição, mas sobretudo para os estudantes, como cidadãos deste imenso país.
Fica aqui o convite a todos os educadores e educadoras de nossas escolas. Somos uma força: em torno de 2.000.000 (dois milhões) de professores atuando na Educação Básica, em 150.000 (cento e cinquenta mil) escolas, instaladas em nossos 5.500 (cinco mil e quinhentos) municípios. Os números são grandes. Com eles, importa reconhecer a força que temos em mãos.
O convite está posto, basta decidirmos mudar os rumos de nosso modo de agir no que se refere ao modo de nos servirmos dos resultados do ato avaliativo em nossas atividades pedagógicas; fator que implica em decidir todos os dias, em nossa vida profissional, de que nossa ação pedagógica fará diferença na vida de cada um dos estudantes que tivermos em nossas salas de aula.


O convite é para passarmos do uso classificatório para o uso diagnóstico dos resultados do ato avaliativo, subsidiando nossos atos educativos engajados e comprometidos socialmente. Isso depende de cada um de nós individualmente e de todos nós coletivamente. Temos em nossas mãos uma força transformadora individual e socialmente. Qual a razão para não nos servirmos dela? Usualmente, na quase totalidade das vezes, podemos ultrapassar as dificuldades emergentes em nossas escolas e salas de aula, garantido que cada estudante tenha os recursos necessários para “chegar à luz do sol”.





2 comentários:

  1. Gostaria de saber como fica nossa avaliação diagnostica, quando o aluno não tem a menor condição de seguir para a próxima fase ou série? Esta avaliação é validada de que forma neste caso?

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