quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

103 - SENSO CRÍTICO NA ABORDAGEM DA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

Cipriano Luckesi
Contato --- ccluckesi@gmail.com



1.  O QUE É SENSO CRÍTICO?

Iniciemos por compreender, lógica e metodologicamente, o que significa senso crítico.

De início, importa clarear que existe uma modalidade de agir cognitiva e praticamente denominada “ser crítico” vinculada ao “senso comum”; senso este que é pragmático, linear, automático. Ou seja, dado alguma coisa, só existe uma possibilidade de encaminhamento e de solução --- “certa” ou “errada” ---, sem que haja nenhuma outra possibilidade.

Contudo, lógica e metodologicamente, existe uma outra possibilidade de “ser crítico”, vinculada ao que efetivamente se denomina de “senso crítico”, isto é, à compreensão de que a realidade é multideterminada, o que implica que os juízos de “certo” ou “errado” não são simples, nem lineares, mas que se dão no seio de uma complexidade de fatores intervenientes e determinantes.

Nosso senso comum cotidiano é pragmático, linear, o que implica que se dá por um recurso de reação instantânea, automática, habitual. A maior parte de nossas condutas diárias se dão por um processo automático. Aprendemos a pensar e agir dessa forma e, “dessa forma”, reagimos automaticamente.

No processo evolutivo, a natureza configurou para o ser humano dois modos de pensar e agir --- o automático (habitual) e o processado de modo consciente. Grande parte, ou a quase totalidade do nosso cotidiano, é regido por condutas automáticas. Para uma pequena parte de nossas condutas, nos servimos do processamento consciente, fator que exige mais esforço de pensamento, escolha e decisão.

Aristóteles, que viveu no século IV a.C, formulou os três princípios da lógica do pensar e do comunicar, que tem sido denominada de formal. São eles:

01. princípio de “identidade” que afirma que “A = A”, isto é, alguma coisa, para ser conceituada como ela mesma, deverá ser sempre idêntica a si mesma;

02. princípio de “contradição”, que, de outra maneira, afirma a mesma coisa, isto é, que alguma coisa não pode ser a sua própria negação --- “A não pode ser não-A”, ou seja, “se é A, só pode ser A”;

03. por último, o princípio do “terceiro excluído”, que, confirmando o primeiro e segundo princípios, diz que “entre A e não-A, não existe uma terceira possibilidade”, isto é, alguma coisa só pode ser ela mesma e, caso seja outra coisa (negação de A), não é mais ela, é outra coisa.

Caso prestemos bem atenção, observaremos que os três princípios giram em torno da compreensão de que só podemos fazer afirmações consistentes caso sempre estejamos nos referindo a mesma coisa, isto é, usando o princípio da identidade; caso nossa referência seja outra coisa, também a afirmação será outra. É uma lógica simples, direta, mas necessária para a constituição do entendimento válido sobre um fenômeno, em particular, seja ele qual for.

O princípio de identidade --- desdobrado em três, para dar precisão ao seu entendimento --- rege nossa forma de pensar no dia a dia, assim como nos diversos ramos de conhecimento, da filosofia, da ciência, da cultura, desde que tratamos de fenômenos individuais e sobre eles produzimos nossos entendimentos válidos.

Aristóteles descobriu o princípio fundante de nosso modo natural de pensar, com lógica e consequência. Ele é válido do ponto de vista lógico, ou seja, cria as condições de validade de um juízo, positivo ou negativo (“é isso”; “não é isso”). Contudo, esse princípio foi utilizado durante muito tempo como se a realidade, que se dá ao conhecimento, fosse sempre “simples”. Ocorre que os objetos do conhecimento nem sempre são simples; ao contrário, na maior parte das vezes, são complexos.

Marx, no decurso do século XVIII --- no contexto dos movimentos pela compreensão da história e da sociedade como ciências --- estabeleceu que, para abordar a realidade, necessitamos ter presente que os fenômenos em estudo são configurados por “múltiplas determinações”, tanto diacrônicas como sincrônicas, ou seja, na dimensão do tempo, como na dimensão do momento presente.

Trabalhando com fenômenos humanos --- história, sociedade, economia, fenômenos socioculturais --- instituiu magistralmente a teoria da complexidade dos fenômenos, ao compreender que um fenômeno histórico-social não pode ser compreendido e pensado a não ser tendo por base suas múltiplas determinações. A singularidade desses fenômenos implica sua complexidade.

Marx --- como todos nós ocidentais, pós aristotélicos --- assumiu o princípio de identidade, como aquele que sustenta a nossa possibilidade de pensar validamente cada um dos fenômenos da realidade, sendo eles simples ou complexos, ciente de que os fenômenos histórico-sociais nunca são simples, desde que sempre multideterminados, diacrônica e sincronicamente.

Hoje, todos os profissionais das mais diversas áreas mantêm, em suas práticas investigativas, a percepção e a compreensão de que a realidade é multideterminada. Por exemplo, pesquisadores das áreas das ciências da natureza (física, química, biologia), ao exercitar suas investigações, sempre tem presente que uma é a variável causal do fenômeno que investigam, mas também tem consciência de que existem outras variáveis (determinações) intervenientes. Por isso, para comprovar a atuação da variável causal de um fenômeno (uma hipótese explicativa), inventam recursos metodológicos de controle das variáveis intervenientes (aquelas que, conjuntamente com a variável em investigação, atuam na determinação do fenômeno em estudo).

 Uma gripe, por exemplo, é causada exclusivamente por um vírus presente num momento da vida de alguém? Claro que não. Ainda que o vírus seja um fator determinante como “causador” da doença, existem múltiplos outros fatores que, no conjunto, criam as condições para que a gripe se instale, tais, como: estado geral de saúde da pessoa, disposições alérgicas, alimentação, espaço saudável, etc... Para compreender e pensar cada um desses fatores, nos servimos do princípio de identidade, desde que ele é fundante do nosso modo de pensar, mas para compreender a gripe e os cuidados para sair de seu quadro de doença, variados fatores terão que ser levados em conta (a complexidade).

Partindo desse exemplo sobre a gripe, que se apresenta como um fenômeno biológico, imaginemos agora as múltiplas determinações que se fazem presentes em acontecimentos histórico, sociológicos, antropológicos; são extremamente multideterminados.

A abordagem desses fenômenos implicará em servirmo-nos da lógica dialética, como recurso de abordagem da realidade, que leva em conta tanto cada elemento em si, como a relação entre eles, como fatores constitutivos da realidade. O princípio de identidade nos possibilita pensar de modo válido, a complexidade, servindo-se do princípio de identidade, nos possibilita compreender um fenômeno sob suas múltiplas determinações. A identidade nos possibilita compreender cada um dos fenômenos, sejam eles simples ou complexos, de modo válido.

O oposto de complexidade da realidade não é a identidade, mas sim a simplicidade do fenômeno abordado. O princípio de identidade opera tanto com um fenômeno simples, como com um fenômeno complexo. A habilidade do investigador, assim como daquele que reflete sobre a realidade, será a capacidade de identificar se o fenômeno ao qual se dedica é simples ou complexo e isso fará a diferença na compreensão final da realidade.  Não se poderá abordar fenômenos complexos como se fossem simples; como também não se poderá abordar fenômenos simples como se fossem complexos. Qualquer uma dessas duas vias, se praticadas com exclusividade, trará distorções no que se refere à compreensão da realidade, que possibilitará, consequentemente, modos práticos de agir no dia a da.

Então, a lógica dialética, integrando a lógica formal, constitui o recurso que nos possibilita desenvolver um verdadeiro “senso crítico”, onde cada fenômeno é reconhecido em sua particularidade, mas, ao mesmo tempo, de forma articulada com o todo. A abordagem simplista --- “um efeito, uma só causa (determinação)” --- é restrita no que se refere a dar conta da complexidade de cada um dos fenômenos da realidade, desde que, usualmente, existem múltiplas determinações para um mesmo fenômeno observado.

Cada fenômeno necessitará ser tratado na sua individualidade -- alguns serão mais simples em sua constituição, outros serão mais complexos. Se desejamos compreendê-los necessitamos levar esse fato em conta.

Então, “ser crítico” (= tratar todo e qualquer fenômeno como simples) difere da capacidade de servir-se de um “senso crítico” (= capacidade de tratar cada fenômeno em sua complexidade).

No primeiro caso, basta “ser contra” alguma coisa, opinar e agir desse modo, que, usualmente, é automático e linear e, na maior parte das vezes, guiado por uma carga emocional.

No segundo caso, importa ter presente o nível de complexidade da realidade tendo em vista compreender e agir diante de determinado fenômeno ou determinada circunstância. Certamente que nos servirmos do senso crítico não tem nada de pragmático, linear e automático; ao contrário, exige um processamento complexo, mental e emocional.

A seguir, veremos que, para cuidar da base comum para o currículo escolar nacional, importa nos servirmos do “senso crítico” em não do “ser crítico”.


02. UM OLHAR DE SENSO CRÍTICO SOBRE A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR


Com a compreensão de que, do ponto de vista epistemológico, o conceito de “senso crítico” difere da noção comum de “ser crítico”, podemos, então, com esse recurso metodológico, retornar à questão da base para o currículo comum nacional, abordada no post anterior, sob o título "Base comum para o currículo nacional".


Parto da necessidade da equalização formativa de todos os educandos segundo um currículo nacional comum.

No post anterior, frente às múltiplas determinações da realidade, no contexto histórico em que vivemos --- onde a cultura e a ciência ampliam seu domínio sobre todo o planeta --- já não cabe mais uma configuração da educação escolar centrada nos conteúdos locais, desde que os conteúdos regionais e os universais também se fazem presentes na vida de todos e, desde que apropriados, possibilitam ao sujeito uma compreensão mais abrangente da realidade. Afinal, a cultura deixou de ser simples e exclusivamente local para ser complexa e universal.

Estamos cientes de que existem ainda grupos humanos “perdidos” em vários rincões do planeta, que ainda não se confrontaram com a presença desses variados níveis da cultura e da ciência. Sem sombra de dúvidas, é possível que essa fenomenologia ocorra. Contudo, vale observar que, mais dias ou menos dias, esses povos serão confrontados pela necessidade de integração na denominada sociedade civilizada, que detém uma compreensão sociocultural mais ampla. Sua cultura local não deverá, de forma alguma ser dizimada, como já ocorrera muitas vezes na história dos povos; contudo, sim, integrada, de modo homeostático, com a cultura mais abrangente.

Qual seria a razão para que isso não devesse ocorrer, assim como para que não viesse a ser levada em consideração, tendo presente as múltiplas dimensões da cultura humana, hoje, já sinalizadas no post anterior, em nossa prática de ensino?

Linearmente (“ser critico”), podemos nos apegar à dimensão mais próxima, que está comprometida com a cultura local, comunitária, todavia, tendo presente a complexidade da realidade, não há como obscurecer o fato de que ela está envolvida por cultura regional e por uma cultura nacional (que, afinal, está comprometida com a cultura universal).

Não há mais como ignorar aquilo que ocorre no mundo da cultura e da ciência nos mais variados rincões do planeta. Não podemos ignorar que a ciência busca compreensões e soluções que possam atender demandas de todos os cidadãos do mundo, não necessariamente deste ou daquele local, ainda que determinadas demandas possam ter nascido de necessidades emergentes de um determinado local.

E, aqui retornam as considerações de Gramsci, sinalizadas no post anterior, a respeito de como a apropriação da cultura, cada vez mais abrangente, amplia o estado de consciência de quem processa essa apropriação; fator que implica em ter uma “base comum nacional para o currículo escolar”, o que significa garantir a todos os educandos as possibilidades de aprender “a compreender o mundo”, a partir de um foco (uma abordagem) que integre a cultura local, regional e nacional, isto é,  que integre ao mesmo tempo o restrito e o abrangente, tendo por suporte a idade e o nível de desenvolvimento de cada educando.

Isso significa que estamos oferecendo a todos os educandos escolares de nosso país subsídios cognitivos e afetivos para a busca da equalização social. Ao menos, através da educação, ofereceremos a todos os educandos deste país um recurso que equaliza a todos em sua formação, ainda que saibamos que em outras esferas da vida, como a econômica, estaremos ainda bem longe da equalização.

Importa investir em alguma possibilidade de equalização e nós educadores temos em nossas mãos a possibilidade de oferecer aos nossos educandos esse recurso; o recurso de uma formação consistente que tenha presente, ao mesmo tempo, a cultura local, regional e universal.

O “senso crítico”, como recurso metodológico para compreender a necessidade de uma base comum para currículo nacional, e consequentemente para a sua prática em sala de aula, é o “parceiro” de cada um de nós educadores para oferecer a cada educando um recurso na busca da equalização social; formação de todos com a competência necessária para a vida no presente.

Se, dessa forma, praticarmos a educação escolar, estaremos subsidiando nossos educandos para que, na vida, possam encontrar o seu lugar, certamente com sua individualidade, mas, ao mesmo tempo, com uma competência equalizada.

O segundo ponto que desejo ressaltar tem a ver com as áreas de conhecimentos e com as disciplinas escolares propostas, como componentes da base comum para o currículo nacional.

Farei um exercício de compreensão relativo ao ensino de história, contudo importa praticar exercício semelhante em relação a todas as áreas de conhecimentos e disciplinas.

Importa usar esse mesmo “senso crítico” --- isto é, tendo presente as múltiplas determinações da realidade (a complexidade) --- para abordar cada uma das áreas de conhecimento ou das disciplinas que comporão o currículo nacional.

Tomemos, de início, a nossa história, exclusivamente para proceder um modo de abordar a realidade. Historicamente, em nossa formação, como povo, temos múltiplas determinações, tendo em nossas origens tanto heranças indígenas, como europeias, como também africanas.

Quando os portugueses chegaram a esta terra, nos inícios do século XVI, aqui viviam povos autóctones (vários), que ocupavam os espaços geográficos, possuindo língua e cultura próprias. Por outro lado, os portugueses, descobridores e colonizadores, trouxeram para cá a cultura europeia com a qual estavam envolvidos, evidentemente sob a ótica portuguesa. E, por último, tendo em vista o empreendimento colonizador, os portugueses praticaram múltiplos procedimentos escravagistas, trazendo para cá africanos de diversas etnias, com seus modos de ser e suas culturas. Os negros, ainda que escravizados e submetidos, contribuíram com inúmeros componentes para formar nossa história e nossa cultura. Posteriormente, especialmente no decurso do século XIX, tivemos os movimentos de emigrantes de vários rincões do mundo para esta terra, especialmente da Europa para cá: italianos, poloneses, alemães, açorianos, entre outros.

Então, para compreender historicamente nossa ancestralidade, e, consequentemente, formar dentro de cada um de nós um modo de ser e de conviver com a totalidade dos nossos concidadãos, não podemos nos ater com exclusividade nem somente às nossas heranças indígenas, nem só às nossas heranças europeias, nem só às nossas heranças africanas, nem só às nossas heranças decorrentes das emigrações europeias mais recentes.

Todos esses componentes históricos, com seus detalhes, são importantes para que nossos estudantes tenham compreensão tanto deste nosso país, como de nosso modo de ser, como também para traçar nossos desejos de transformação. Todos esses componentes nos formaram e continuam a nos formar; para compreender-nos, importa compreender essa história.

Observar que ensinar e aprender sobre nossa história não tem por objetivo garantir que cada estudante “saiba cognitivamente” sobre os acontecimentos que forjaram este país.

Com certeza, isso também; mas, importa que esses estudos históricos possibilitem simultaneamente a formação do caráter, do modo de ser dos nossos estudantes, aprendendo a conviver com todas essas nossas heranças, sem minimizá-las ou excluí-las, como melhor ou pior. Não. Todas essas heranças, com seus detalhes, nos constituíram e com elas vivemos em nosso corpo, em nossa cultura, em nossa espiritualidade.

Todos, se queremos compreender e colaborar para este país seja aquilo que deve ser --- um espaço onde todos podem viver de forma saudável, confortável e de forma equalizada ---, necessitamos de estudar, compreender e integrar em nosso caráter pessoal os ensinamentos que podem e devem estar sistematizados nesses quinhentos anos de vida nesta terra, assim como sistematizados nos anos e anos antecedentes das culturas que vieram desembarcar em nossa história nacional; os povos indígenas, os povos europeus e os povos africanos já tinham muito caminho andado, quando passaram a compor nossa história. Então, necessitamos sim de conhecer os dados da história indígena, europeia e africana, assim como da presença de todos eles na história de nossos quinhentos anos de vida como país. São os ancestrais que nos constituíram. Como não conhecê-los?

Nenhuma dessas heranças, por si, explicam ou oferecem compreensão de nossa história, mas sim todas elas. Tomar uma ou outra dessas heranças, como "a nossa herança" seria linearizar nosso passado histórico, seja qual for dessas heranças aquela que seja assumida como única, desde que as três estão na base da nossa constituição como país.

Acredito que, nesse contexto, necessitamos, criticamente, de nos servimos dos quatro objetivos da educação para o século XXI, estabelecidos pela UNESCO no alvorecer deste século: (01) aprender a conhecer, (02) aprender a fazer, (03) aprender a viver juntos, (04) aprender a ser.

Creio que importa --- usando senso crítico --- que exercício semelhante de entendimento e reflexão seja realizado em relação a cada área de conhecimentos ou a cada disciplina escolar que vier a compor a base comum do currículo escolar nacional. Nada deve ser excluído, mas tudo compreendido e integrado.