sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

102 - BASE COMUM PARA O CURRÍCULO NACIONAL

Cipriano Luckesi
Contato --- ccluckesi@gmail.com



Recentemente, alguém dos participantes do Facebook perguntou-me sobre a Base Comum para o Currículo Nacional. Devo dizer que não tenho nenhuma especialidade na área, todavia, tenho uma compreensão sobre currículo nacional que posso partilhar.

Antonio Gramsci, que foi um militante político italiano da primeira metade do século XX, em um dos seus livros, fala da ampliação da compreensão de cada um de nós à medida que ampliamos nossos conhecimentos e habilidades. E, para exemplificar a importância dessa ampliação de consciência, ele se serve da experiência dos dialetos em seus país. Todos sabemos que na Itália existem muitos dialetos, como também existem as línguas regionais e o italiano, que é a língua nacional. Então, Gramsci diz que é importante que cada italiano saiba o dialeto de sua comunidade, tendo em vista comunicar-se com seus pares. Mas, será melhor ainda se, além de falar o dialeto de sua comunidade, souber se comunicar pela língua regional, desde que poderá comunicar-se com os cidadãos de uma região, que é mais ampla que o seu cantão. E. será melhor ainda se for capaz de comunicar-se em italiano, a língua nacional, desde que poderá comunicar-se com todos os italianos. E, acrescenta que, se o cidadão aprender uma língua estrangeira, será melhor ainda, desde que poderá comunicar-se com cidadãos de outro país. Então, quanto mais ampla fora a habilidade de comunicação, mas amplo será seu estado de consciência.

Podemos fazer um paralelo entre essa reflexão de Gramsci e a questão do currículo nacional. Se nossos educandos mantiverem contato exclusivamente com a cultura local, seu estado de consciência será restrito a esse ambiente sociocultural. Mas, se, para além da cultura local, puder se relacionar com a cultura regional, mais amplo poderá ser estuado de consciência. E se, além do contato com sua cultura regional, puder estar em contato com a cultura nacional --- que, afinal, está articulada com o cultura universal ---, melhor ainda.

Então, para mim, a função de garantir as todos os educandos brasileiros contato e aprendizagem através de um currículo que estabeleça uma base comum nacional é oferecer aos educandos recursos para a busca da equalização social.

Não é que a educação garanta a equalização social. Junto com muitos outros fatores transformadores, uma educação de qualidade positiva e igualitária para todo o país tem a possibilidade de garantir que todos os educandos que passem pela escolaridade tenham a posse de um recurso mínimo para disputar seu “lugar ao sol”. Todos, no país inteiro, terão aprendido o necessário para viver em qualquer dos rincões deste país ou quiçá fora dele. Todos terão tido oportunidade equivalente de ampliar sua consciência. Poder-se-á estudar em qualquer escola dos mais variados espaços deste país e todos terão aprendido igualmente conteúdos essenciais para a sua vida pessoal e para a vida social.

Então, pessoalmente, não tenho dúvidas de que podemos e devemos buscar uma base curricular comum para todo o país. Isso não significará suprimir quer a cultura regional, quer a cultura local. Não. Simplesmente que dizer que importa que todos os cidadãos brasileiros --- de norte a sul, de leste a oeste deste país --- tenham a oportunidade de aprender os conteúdos essenciais da ciência e da cultura universais, que, afinal são traduzidos em currículos. Ao lado do currículo nacional, conteúdos regionais e locais poderão e deverão ser levados em consideração, mas o currículo nacional é para todos, estejam vivendo em que região ou local for.

Desse modo, estudantes do norte, do sul, do leste e do oeste estarão aprendendo de modo equivalente os conteúdos provenientes da cultural universal, sem que, para tanto, tenham que descuidar da cultura regional e local. Creio que valha a pena investir numa base comum curricular nacional pelas razões acima citadas.

Por outro lado, acredito na necessidade de que todos nós educadores necessitamos e devemos partilhar nossas compreensões sobre a base comum para o currículo nacional, desde que tanto os textos já elaborados, como as abordagens que irão sendo oferecidas por todos nós, terão como pano de fundo tanto a compreensão dos seus atuais autores, como também as compreensões do comentadores. E, então, de novo, importa que a abordagem seja ampla e consistente, caso contrário, mesmo sendo indicado, como uma base comum, atenderá certas compreensões que podem ser restritas. Então, a base comum deverá ter como seu pano de fundo a cultura universal, que atenda as mais novas e significativas abordagens no que se refere às mais variadas ciências, como também garantindo espaço para o atendimento de necessidades regionais e locais específicas.
Não tenho domínio específico sobre os documentos hoje oferecidos para a discussão entre educadores e base para sugestões, mas verifiquei que historiadores já vem criticando e sugerindo novas direções sobre o documento que trata da história, lembrando que temos heranças históricas europeias e que não cabe dar privilegio seja à história africana e/ou indígena em detrimento dos tratamentos também da história europeia. Afinal "nem tanto ao mar nem tanto à terra".

Semelhante a essas abordagens críticas deverão existir outras --- muitas outras --- relativas à diversas áreas de conhecimento.

Essas observações críticas não invalidam a necessidade de um currículo nacional, que configure a educação escolar no país inteiro, viabilizando equivalentes recursos formativos a todos os nossos educandos, garantindo, dessa forma, mais um recurso para a equalização social como sinalizei acima.








quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

101 - ENTREVISTA SOBRE AVALIAÇÃO - PUBLICADA NO JORNAL DO BRASIL NO ANO DE 2000

ENTREVISTA SOBRE AVALIAÇÃO
PUBLICADA NO JORNAL DO BRASIL, EM 27/07/2000
Cipriano Luckesi
Contato --- ccluckesi@gmail.com




NOTAS: (01) Essa entrevista foiu publicada no ano de 2000 pelo Jornal do Brasil e este sediada em meu site www.luckesi.com.br. Como esse site estará sendo desativado, estou transferindo para este blog os textos publicados naquele espaço.

(02) Tendo em vista os estudos sobre avaliação em educação no presente momento, foram efetuados pequenas atualizações, a medida que a entrevista foi publicada no ano 2000 e estamos no ano 2016. As perguntas sobre avaliação em larga escala foram suprimidas devido a já não mais corresponderem a realidade do presente.


JB

Sempre se entendeu que avaliar o aluno era verificar o quanto ele havia assimilado do conteúdo a ele passado pelo professor. O que começou a determinar que se repensasse essa forma de avaliar até chegarmos às novas concepções de avaliação que temos hoje?


C C LUCKESI

A modalidade dos exames escolares, que conhecemos hoje, foi sistematizada no decorrer do século XVI e primeira metade do século XVII. Os jesuítas em um documento publicado em 1599, denominado Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Jesus (Ordenamento e Institucionalização dos Estudos na Sociedade de Jesus), usualmente conhecido como Ratio Studiorum, formalizaram o modo de administrar a prática pedagógica em suas escolas, assim como um modo específico de examinar os alunos no final de um ano letivo. Esse modo de examinar escolarmente ainda está vigente em nossas práticas cotidianas.

Por exemplo, lá está normatizado que no momento das provas, os alunos não poderão solicitar nada que necessitem, nem aos seus colegas nem àquele que toma conta da prova; não deverão sentar-se em carteiras conjugadas, porém se isso ocorrer, dever-se-á prestar muita atenção nos dois estudantes que estiverem sentados juntos, pois que, caso as respostas às questões dos dois sejam iguais, não se saberá quem respondeu e quem copiou; o tempo da prova deverá ser estabelecido previamente e não se deverá permitir acréscimos de tempo, tendo em vista algum aluno terminar de responder a sua prova pessoal; etc.. Genericamente, são regras que seguimos ainda hoje na escola.

Por outro lado, em 1632, John Amós Comênio, um bispo protestante, da Morávia, hoje Tchecoslováquia, publicou um livro intitulado Didática Magna, cujo subtítulo é bem grandiloquente: ou da arte universal de ensinar tudo a todos, totalmente.

Nessa obra Comênio, definiu muitos elementos que ainda hoje estão presentes em nossas práticas. Por exemplo, a pergunta ---  “que aluno não se preparará suficientemente bem para as provas se ele souber que as provas são para valer?”--- por ele formulada nessa obra, está presente na fala de quase todos os nossos professores.

Nossos professores, usualmente e de forma assemelhada, dizem assim para os seus estudantes, ameaçando-os: “Olha, cuidado, estudem! Minhas provas são prá valer, hein!”.

Comênio está presente também em outras práticas, tal como aconselhar os educadores a utilizarem-se do medo como recurso para conseguir que os seus estudantes prestem atenção às atividades em aula, na medida em que a atenção é necessária para a aprendizagem eficiente. Fato que ainda está presente em nosso cotidiano, através de arguições exageradas e intempestivas, ou ainda na ironia diante de certas expressões dos educandos.

Dessas sistematizações iniciais muitos foram os aperfeiçoamentos se seguiram na modalidade dos exames no decorrer dos séculos seguintes, que ainda se fazem presentes no ida a dia de nossas escolas.

Claro, os caminhos da educação institucionalizada não foram tão lineares como pode parecer à primeira vista.

A partir da constituição da Psicologia como ciência e da emergência dos testes psicológicos em finais do século 19 e início do 20, especialmente, para a testagem da inteligência, nasceu, na pedagogia, a preocupação com os testes cientificamente elaborados. Foi um período de aperfeiçoamento dos instrumentos de testagem, mas não se questionava a validade dos exames escolares que eram praticados no cotidiano escolar.

Nos anos 1960, nos Estados Unidos, houve um incremento à discussão da avaliação mais em função da necessidade de se verificar o que se fazia com o dinheiro aplicado em educação; portanto uma preocupação mais com avaliação de programas educacionais do que com a aprendizagem.

Nos início dos anos sessenta, o governo Kenedy, nos USA, estava preocupado com os resultados do programas educacionais norte-americanos. Então, nasceram os modelos de avaliação para programas de educação.

Foram muitos os modelos. Popham, um estudioso norte-americano da avaliação educacional diz que foram tantos os modelos que o mais difícil não era utilizar os modelos, mas sim entender as diferenças entre eles.

Cada autor criava um modelo diferente para avaliar os programas, variando desde “avaliação por objetivos”, “avaliação sem objetivos”, “avaliação interna”, “avaliação externa”, “avaliação natural”, “avaliação diagnóstica, formativa e somativa”, “avaliação de contexto, de entrada, de processo e de produto”, etc... Muitos!

No bojo desse movimento, sistematizou-se a Tecnologia Educacional, uma modalidade de ensino que vinha emergindo desde os anos trinta nos USA, e chegou ao Brasil, com muita força, no final dos anos 1960 e inícios dos anos 1970, especialmente com o movimento em torno da Lei de Diretrizes do Ensino de Primeiro e Segundo Graus, promulgada em 1971, a famosa Lei 5692/71.

Essa lei sofreu muita influência dos pedagogos norte-americanos e dos interesses do governo norte-americano no que se referia à educação dos países em desenvolvimento, via o convênio MEC/USAID, de cooperação no âmbito da educação, celebrado entre o governo brasileiro e norte-americano.

Vivíamos um momento forte do colonialismo contemporâneo, via os mecanismos socioculturais. A tecnologia educacional trazia uma larga preocupação com a eficácia das ações educacionais. Ela se propunha a produzir resultados “custo-efetivos”. Tendo em vista buscar a efetividade, no seio da tecnologia educacional se pesquisou, se propôs e se exercitou processos avaliativos que garantissem essa eficiência. Então, a avaliação educacional ganhou importância, por um viés eficientizante.

Nesse contexto, e nesse momento histórico, trabalhávamos muito sobre os procedimentos de avaliação e pouco sobre questões de fundo sobre essa prática educativa.

Pessoalmente, vivi esse momento. Iniciei a trabalhar com avaliação da aprendizagem em 1968. Então, produzi testes, quantifiquei testes, diagnostiquei o aproveitamento escolar com os testes, etc...

Mas, já em meados dos anos setenta percebi que o caminho era insatisfatório. Havia necessidade de uma compreensão mais fundamental sobre essa prática. Assim sendo, aventurei-me a abordar a avaliação a partir de perspectivas diversas. Inicialmente, foi a questão filosófica da avaliação da aprendizagem, depois, a questão sociológica, a seguir a política; e, ultimamente, tenho estado atento às questões psicológicas e pedagógicas.

Então, essa nova abordagem sobre a avaliação, nasceu da insatisfação com os exames escolares e com os tratamentos somente técnicos anteriores. Penso que essa insatisfação se deu em variados lugares. Pessoalmente, comecei a trabalhar nele a partir de estudos filosóficos e políticos da educação, já no início da década de 1970.

Posteriormente, descobri que também em outros espaços geográficos, também, nesse mesmo período iniciavam-se estudos na mesma direção, tais como na Inglaterra, França, Suíça.

Nos USA, havia a tradição mais tecnicista, iniciada com a tecnologia educacional. Deste modo, o novo em avaliação da aprendizagem veio da insatisfação com velho (exames jesuíticos e comenianos) e com o renovado (a pedagogia chamada científica do início do século e o tecnicismo).

As teorias e práticas tanto dos exames como dos testes eram ingênuas, no sentido de que tinham seu foco exclusivo na questão técnica, como se não tivessem um comprometimento ideológico, socio-historicamente definido. Fato que nos conduziu a nós pesquisadores da área a investigar os vínculos políticos dos exames e testes com o modelo de sociedade vigente, que, desde o nascimento da modernidade, é um modelo centralizador e autoritário.

Daí que, num dado momento, em várias oportunidades, escrevi sobre o autoritarismo na prática avaliativa escolar, tornando-se meio clássico um texto intitulado Avaliação da aprendizagem escolar: para além do autoritarismo. Foi um texto de 1984, elaborado como base para uma Comunicação Livre, num Seminário Nacional de Tecnologia Educacional, realizado em Porto Alegre.

Mais recentemente, além da insatisfação com a ingenuidade ideológica dos exames e dos testes, eu tenho e muitos outros têm trabalhado bastante nos aspectos psicológicos e efetivamente pedagógicos envolvidos nessas práticas. Daí a emergência de novas possibilidades. E, é claro, existem pesquisadores, no momento presente, que trabalham com recursos técnicos da avaliação; o que é importante, na medida em que, como diz Marx, nenhuma teoria vai à prática sem múltiplas mediações.


JB

Em que a escola "peca" ao avaliar seus alunos, hoje?


C C LUCKESI

Infelizmente, tenho que dizer que genericamente falando, ou seja, sem mencionar esta ou aquela escola, este ou aquele professor, a escola hoje ainda não avalia a aprendizagem do educando, mas sim examina, ainda dentro da modalidade jesuítico-cameniana, como explicitei anteriormente. Esse é o “pecado”!

Para perceber isso, basta verificarmos as características básicas, de um lado, do ato de examinar e, de outro, do ato de avaliar.

Os exames, em primeiro lugar, são pontuais, o que significa que não interessa o que estava acontecendo com o educando antes da prova, nem interessa o que poderá acontecer depois. Só interessa o aqui e agora. Tanto é assim que se um estudante, num determinado dia de prova, após entregar a sua prova respondida ao professor e se der conta de que não respondeu adequadamente a questão 3, por exemplo, e solicitar ao mesmo a possibilidade de refazê-la, nenhum dos nossos professores, hoje atuantes em nossas escolas, permitirá que isso seja feito; mesmo que o estudante nem tenha ainda saído da sala de aulas. Os exames são cortantes, na medida em que só vale o aqui e o agora, nem o antes nem o depois.

Em segundo lugar, os exames são classificatórios, ou seja, eles classificam os educandos em aprovados ou reprovados, ou coisa semelhante, estabelecendo uma escala classificatória com notas que vão de zero a dez. São classificações definitivas sobre a vida do educando. Elas são registradas em cadernetas e documentos escolares, “para sempre”.

As médias obtidas a partir de duas ou mais notas revelam isso. Por exemplo, quando um aluno tem um desempenho insatisfatório numa prova de uma determinada unidade de ensino e obtém uma nota 2,0 (dois), nós professores lhe aconselhamos estudar um pouco mais e submeter-se a uma nova prova. Então, o aluno faz isso e, nesta segunda oportunidade, obtém nota 10,0 (dez). Qual será a nota final dele? Certamente será 6,0 (seis), resultado da média entre o dois inicial e o dez posterior. Mas, por que não 10,0 (dez), se foi essa a qualidade que ele manifestou na segunda oportunidade? Antes, ele não sabia, porém, agora, sabe. Não atribuímos o dez a ele, devido ao fato de ter obtido dois antes. Esse “dois” era definitivo, de tal forma que não nos possibilitou atribui-lhe o dez, apesar de ter manifestado essa qualidade plenamente satisfatória em sua aprendizagem  

Em consequência dessa segunda característica, emerge uma terceira. Os exames são seletivos ou excludentes. Porque classificatórios, os exames excluem um grande parte dos educandos. Muitos ficam de fora. A pirâmide educacional brasileira é perversa; o aproveitamento de nossos educandos é estatisticamente muito baixo. Numa média bem geral, no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, aproveitamos, no país, em torno de 35% dos estudantes efetivamente matriculados. Evidentemente que para essa perda estão comprometidos também outros fatores tais como a distribuição de renda no país, nossas políticas públicas e as determinações socioculturais. Ao lado desses fatores, os exames contribuem, e em muito, para esse fenômeno de exclusão educacional que vivemos, devido eles serem seletivos.

De outro lado, também são três as características da avaliação; são exatamente opostas às características dos exames.

A avaliação é não-pontual, diagnóstica (por isso, dinâmica) e inclusiva. Ou seja, à avaliação interessa o que estava acontecendo antes, o que está acontecendo agora e o que acontecerá depois com o educando, à medida que a avaliação da aprendizagem está a serviço de um projeto pedagógico construtivo, que olha para o ser humano como um ser em desenvolvimento, em construção permanente.

Para um verdadeiro processo de avaliação, não interessa a aprovação ou reprovação de um educando, mas sim sua aprendizagem e, consequentemente, o seu crescimento; daí ela ser diagnóstica, permitindo a tomada de decisões para a melhoria; e, consequentemente, ser inclusiva, enquanto não descarta, não excluí, mas sim convida para a melhoria.

Nesse contexto, o pecado da escola, ao avaliar o educando, é examiná-lo em vez de avaliá-lo.



JB

Nos três níveis de ensino (fundamental, médio e superior), a avaliação ainda se realiza mais como forma de condenar o aluno do que para que se descubra em que pontos frágeis é preciso ajudá-lo, não? Para que se avalia, afinal?


C C LUCKESI

A avaliação tem essa finalidade que você aponta: diagnosticar onde o educando está manifestando carências e descobrir e tomar a decisão de como ajudá-lo a superar suas fragilidades. Porém, essa não é a finalidade dos exames.

Os exames têm por objetivo saber se o educando atingiu, aqui e agora, o esperado dele. Se não atingiu, será reprovado, o que implica em sua exclusão do grupo dos que “sabem” esta ou aquela coisa.

Deste modo, os exames não têm por objetivo subsidiar decisões no sentido de superar dificuldades, na medida em que eles não são atos avaliativos verdadeiramente, como vimos acima.

Por outro lado, vale à pena sinalizar que, em consequência desse seu poder seletivo, os exames servem a um processo de controle disciplinar aversivo do educando, que tem na sua base uma forma de administrar o poder na relação pedagógica. Ou seja, como o professor tem em suas mãos o poder de aprovar ou reprovar, ele se utiliza dos exames, através das provas, para submeter os educandos aos ditames disciplinares familiares, escolares, e, pois, sociais. O educando, por sua vez, teme o poder que o professor tem, utilizando-o especialmente via a prática examinativa, que equivocadamente vem sendo chamada avaliativa.

É comum ouvir um professor, em sala de aula, dizer para os estudantes coisas como as que se seguem: “Estudem, caso contrário, vocês vão ver o que acontecerá no dia da prova”; “Tomem cuidado! Vocês não estão estudando. Não me venham chorar no dia da prova”; “Olha, esse conteúdo de hoje é conteúdo de prova”; “Ou vocês ficam quietos nesta aula, ou vocês vão ver o que vai acontecer com vocês no dia da prova!”

Essas ameaças não tem nada a ver com a verdadeira aprendizagem, mas sim com o disciplinamento dos educandos, com o seu controle disciplinar através do medo.

Trabalho com avaliação desde o fim dos anos 1960 e início dos anos 1970, tenho feito conferências ou ministrado cursos em todos os cantos deste país, em capitais e cidades do interior, e nestas ocasiões, ouço sempre a seguinte pergunta: “Como é que vou controlar os educandos, se não tiver mais as provas para obrigá-los a estudar?” Essa pergunta é disciplinar e não educativa.

Nesse contexto, torna-se fácil exacerbar o poder e cair no autoritarismo. O professor tem em suas mãos o poder oficial de aprovar e reprovar. Para ameaçar e submeter os educandos, basta utilizar-se deste poder, que é pleno na sala de aula.

Nós todos, eu, você que me entrevista e todos os leitores desta entrevista, poderemos voltar-nos para o nosso  passado pessoal e lembrar-nos dos medos que vivenciamos nas ocasiões dos exames, das arguições orais na sala de aula, assim como nos momentos de uma leitura em voz alta e coisas semelhantes.

Todos nós tivemos medo da autoridade do professor, que poderia nos desqualificar e nos reprovar. E, de fato, infelizmente, houve e há utilização desse poder para desqualificar o educando, ameaçando-o com o nosso poder de aprovar ou reprovar.

Em síntese, eu modificaria sua pergunta “afinal, porque se avalia?” para “afinal, porque se examina?” e, então, respondo que, na modalidade dos exames, atualmente ainda vigente em nossas escolas, se examina para disciplinar os educandos, obrigando-os a submeter-se à ordem escolar, que se configura dentro de um processo de reprodução da ordem social, incluindo aí todas as instância, tais como a família, as organizações religiosas, escolares, sociais, políticas... O último objetivo é introjetar no educando um controle a partir dos valores sociais vigentes.

Daí você poderá perguntar, mas isso não ajuda a aprender os conteúdos escolares? Os grandes cientistas não aprenderam desse jeito? . Eu digo que sim, mas pergunto: a que preço? Será que é preciso tanta dor e sofrimento para se aprender e se desenvolver?

Penso que existem caminhos mais sadios. Entre muitos outros, um deles é fazer da avaliação verdadeiramente avaliação e não confundi-la com exames, como temos feito historicamente.

 
JB

Mudar a forma de avaliar não pressupõe mudar também a relação ensino-aprendizagem? Se não se vê as disciplinas curriculares de forma contextualizada, como um meio para se chegar a ser um cidadão crítico e bem preparado, mas sim como conteúdos estanques que se dominam muito mais pela memorização; se não se leva em conta o conhecimento e as informações que o aluno traz para a escola e que dão um tom diverso àquilo que ele recebe ou troca com o professor, e sim vê-se o aluno como uma tábula rasa a ser preenchida, acaba-se avaliando também à moda antiga, não?
C C LUCKESI

Não podemos desvincular os mecanismos de aferição da aprendizagem dos projetos pedagógicos, aos qual eles servem. A prática dos exames ou a prática da avaliação não servem a si mesmas, mas sim a um determinado projeto. Tanto os exames como a avaliação são práticas subsidiárias de determinados projetos de ação. No nosso caso, subsidiárias de projetos pedagógicos.

Os exames são adequados para um projeto pedagógico tradicional, que tem sua base numa visão estática e controlada da vida. A pedagogia tradicional se sistematizou com a emergência e consolidação da sociedade burguesa.

Nesse sentido, é interessante observar que os revolucionários franceses só foram revolucionários até a tomada da Bastilha; depois disso, assentaram-se no poder e optaram por uma sociedade estável e conservadora.

No decorrer do processo revolucionário, os padres foram proibidos de ensinar, na medida em que representavam o antigo, o retrógrado, o estático, na visão dos revolucionários franceses; porém, logo após a vitoriosa Revolução Burguesa, os padres e religiosos católicos foram chamados novamente para o seio do ensino, exatamente por, naquele momento, expressarem o que era estável, sem mobilidade.

Deste modo, como o modelo social burguês é conservador, viu-se expresso na pedagogia tradicional, que tem os exames como seu modo adequado de aferir a aprendizagem, evidentemente com todos os seus vínculos disciplinares.

Os exames expressam o modo conservador da pedagogia tradicional, que, por sua vez, expressa o modelo social burguês conservador. Assim sendo, os exames apresentam características inadequadas somente para quem deseja um modelo social diverso do burguês, isto é, que seja igualitário e democrático.

Observar que a sociedade burguesa, que, aparentemente admite a mobilidade social, porque liberal, verdadeiramente é uma sociedade seletiva e excludente. Grande parte da população, dentro do modelo burguês de sociedade, vive excluída, seja da renda, seja dos bens sociais de educação e saúde, do lazer, moradia, etc... A pedagogia tradicional, através dos exames, repete esse modelo, à medida que os exames possuem e expressam a característica seletiva.

Neste contexto, nossos currículos, que estão postos em prática, não aqueles anunciados nos projetos educacionais das escolas, mas aqueles que verdadeiramente são vividos na sala de aula, nos exames, nas relações humanas escolares, na recreação, etc... são tradicionais. Muitas escolas tem um belo Projeto Pedagógico Construtivo escrito, mas a sua prática é totalmente tradicional. Daí que a aferição da aprendizagem, nesse contexto, termina sendo tradicional, por mais que se diga que se está praticando a avaliação.

É contraditório desejar praticar avaliação dentro da pedagogia tradicional. Praticar um currículo tradicional e avaliar são coisas incompatíveis. Para um currículo tradicional é adequada a prática de examinar. Para a prática de avaliar, necessitamos de um currículo centrado no desenvolvimento, na construção, na experiência da igualdade e da democracia, no seu mais preciso sentido.


JB

Ainda que não estejam sendo colocadas em prática de forma ampla, as novas concepções acerca de avaliação (verificar o que o aluno aprendeu, e o que ainda falta aprender, valorizar a conquista do aluno, avaliá-lo em relação a ele próprio e não em relação a um modelo, trabalhar de forma multi e interdisciplinar, etc.) parecem ser mais claras no que diz respeito ao Ensino Fundamental e à criança. E em relação ao jovem, no Ensino Médio e no Ensino Superior, o que se vem repensando acerca da avaliação?


C C LUCKESI
Avaliação será avaliação em toda e qualquer instância, ou seja, por si, é o ato de subsidiar a construção de resultados satisfatórios. Não há um conceito próprio de avaliação para o Ensino Fundamental, outra para o Ensino Médio e outra para o Ensino Superior, assim como não há um conceito específico de exame para cada uma dessas esferas de ensino. A prática da avaliação, do ponto de vista conceitual, é  mesma para qualquer nível de ensino. Todavia, existirão sim nuanças metodológicas e técnicas que terão que ser adequadas aos diversos níveis de ensino e aos diversos tipos de conteúdos e práticas.

Em qualquer instância, avaliar será sempre diagnosticar a realidade, qualificando-a, tendo em vista subsidiar decisões para a obtenção do melhor e mais adequado resultado possível de uma determinada ação.

No que se refere aos níveis de ensino, o que podemos e devemos discutir são os recursos mais adequados para cada uma dessas modalidades de ensino, com suas características específicas, na medida em que os usuários de cada uma delas possuem especificidades etárias, psicossociológicas e culturais completamente diversas.

Assim, existem pesquisadores e educadores que tem investigado e proposto práticas avaliativas para cada uma dessas modalidades de ensino, mas sempre na via metodológica. A via conceitual será sempre a mesma: avaliação é avaliação em qualquer instância.



JB

As demandas são as mesmas nestas outras faixas de ensino ou, à medida que vai se chegando perto de se precisar ocupar uma vaga no mercado de trabalho, a avaliação que a escola faz de seus alunos deve mudar?


C C LUCKESI
As exigências do mercado trabalho, quando forem levadas em consideração, deverão compor as definições curriculares de uma prática educativa, de um curso, por exemplo. A avaliação, no caso, subsidiará a obtenção dos melhores resultados possíveis, se este for o desejo e a política do gestor da atividade (administrador, professor, etc...).

Deste modo, as exigências do mercado não atuarão diretamente sobre a avaliação, mas sim sobre o projeto da atividade, que, consequentemente, refletirá, indiretamente,  na proposta e na prática da avaliação.

Aparentemente, na pedagogia tradicional, os exames possuem uma independência do projeto pedagógico. O que, de fato, não é verdade. Os exames servem ao projeto pedagógico tradicional, que é conservador e excludente como a sociedade burguesa, a qual serve, é conservadora e excludente.

Muitas vezes, os professores justificam seu autoritarismo, nas práticas examinativas, frente a possíveis exigências do mercado. Por exemplo, muitos diretores de escolas e professores dizem que, na prática examinativa do Ensino Médio, torna-se necessário ser bastante exigente e rigoroso com os estudantes na medida em que eles deverão se submeter à uma experiência bastante difícil, que é o vestibular.

Em nome disso, elaboram provas parecidas com as do vestibular para, dizem eles, treinar os esudantes para essa tarefa. Mas, com essa prática ameaçam os estudantes e os submetem a tormentos exacerbados e desnecessários, em nome de uma exigência externa.

Contudo, sem se utilizar do vestibular para justificar o próprio autoritarismo, as escolas e seus professores poderiam desenvolver um ensino-aprendizagem construtivo e, além disso, treinar para o vestibular. Por exemplo, ao invés de ameaçar os estudantes com as futuras dificuldades do vestibular, que justificariam as dificuldades excessivas inseridas nas provas regulares das escolas, poderiam proceder na escola os simulados dos exames vestibulares, tendo em vista treinar os estudantes para os mesmos.

O vestibular, de fato, não tem nada a ver com avaliação. Ele é exame (por isso classificatório), pois que necessita de excluir muitos, devido a incapacidade política e social do país em oferecer vagas escolares para quem as deseja.

Como as Universidades não são capazes de absorver a demanda, ela seleciona. E, para isso, servem-se dos exames. Diz-se que o vestibular é para selecionar os melhores. Não é verdade! Não necessariamente os que são selecionados são os melhores. E mais: o que são os melhores? Diante de que parâmetros, escolhemos os melhores pelo vestibular?

De fato, o vestibular está estabelecido para restringir o atendimento à demanda, à medida que somos incapazes de atender a todos, por isso, selecionamos, dai o vestibular ser um exame e não uma prática de avaliação.

Se o vestibular estivesse efetivamente vinculado à qualidade do educando, não haveria necessidade do excessivo e insistente treinamento que se faz durante o ensino médio ou nos cursinhos, tendo em vista esse processo de ingresso no ensino superior.

Nessas experiências os adolescentes aprendam a responder tipos específicos de questões que são utilizadas nos variados vestibulares que ocorrem no Brasil. Assim, os alunos são treinados em questões do tipo “USP”, tipo “Fundação Carlos Chagas”, tipo “UNICAMP”, tipo “UFBA”, etc...

Não importa, em primeiro lugar, a aprendizagem dos conteúdos da mais verdadeira e significativa forma, mas sim a aprendizagem para o vestibular. Os vestibulares, aparentemente, trabalham com as qualidade e as habilidades dos adolescentes, mas de fato, eles trabalham com a seleção, na medida em que os poderes públicos e privados não são capazes de atender a demanda social existente para o ensino superior.

A meu ver, vestibular não é um fenômeno que tem a ver com educação, mas sim com a incapacidade política e administrativa que o país, através de seus mandatários, tem de atender a demanda social dos cidadãos por educação superior.

A educação formal, por si, não será capaz de dar conta de um fenômeno que não é seu. Daí o nosso desvio de achar que o Ensino Fundamental e Médio é o responsável por responder a determinadas demandas sociais, que pertencem a outras instâncias sociais que não a educação. E, consequentemente, daí nossas angústias e nossos malabarismos pedagógicos para tentar responder a um fenômeno social que não é da alçada de nós educadores.

Deste modo, muitas vezes, estamos dizendo que praticamos exames para treinar nossos estudantes para determinadas exigências sociais; mas esse treinamento para essas exigências poderiam ser atendidas sem massacrar nossos educandos.

Por exemplo, já que falamos em vestibular, poderíamos treinar nossos educandos para o vestibular sem submetê-los, durante os três anos do Ensino Médio, a uma extressante prática de provas. Treinaríamos via os simulados.

A escola no nível do Ensino Médio teria uma disciplina, por exemplo, que se intitularia “Treinamento para o Vestibular” e, então, poderíamos trabalhar amorosa, criativa e consistentemente com nossos estudantes e, também, treiná-los-íamos para o vestibular. E, então, não teríamos o álibi do vestibular para justificar o nosso autoritarismo sobre os educandos. Teríamos que nos curar desse afã desmesurado do poder centralizador, com o que, evidentemente, a vida democrática ganharia muito.


JB

O senhor pesquisa avaliação há muitos anos. O que se modificou na abordagem do tema na última ou duas últimas décadas?

C C LUCKESI
Teoricamente, houve bastante mudança, na medida em que estamos formulando novos conceitos e novas proposições, mas também, ainda que em menor escala, ocorreu mudanças na postura dos educadores, seja no que se refere aos seus conhecimentos assim como no que se refere às suas práticas.

Observo que há uma mudança de postura entre muitos professores, assim como há uma preocupação de muitos administradores educacionais com o tema, nesses últimos trinta anos.

Há crescimento nessa preocupação. Só para você ver --- um fato bem biográfico ---, em 1980, fui convidado pela Associação Brasileira de Tecnologia Educacional para coordenar um Fórum de Debates sobre Avaliação da Aprendizagem no seu Seminário Nacional, na cidade do Rio de Janeiro. Eu teria 20 horas para trabalhar esse tema com um grupo de participantes do evento que o desejasse. Entre 800 participantes, tive três que se interessaram pelo meu tema.

Em 1982, dois anos depois, fui convidado novamente por essa mesma instituição, para uma nova experiência. E, de novo, entre 800 participantes, tive cinco interessados e trabalhei com eles, durante vinte horas, sobre esse tema.

Hoje vinte anos depois, em minhas conferências sobre avaliação da aprendizagem, não tenho tido menos de seiscentas, setecentas pessoas, ou mais que isso. Já cheguei, recentemente, a trabalhar, durante dois dias, com hum mil e quinhentas pessoas, na cidade de Caçador, no interior de Santa Catarina.

Então, o interesse tem mudado muito sobre o tema e isso, consequentemente, implica em mudança na prática, o que evidentemente nem é fácil nem é simples. Implica em abrir mão do poder autoritário e aprender a viver democraticamente, o que implica em servir e não impor.

A meu ver, aqueles que vão às conferências e às sessões de estudo é porque já estão vinculados ao tema. Estão voltados para descobrir e mudar seus modos de agir. Goethe tem uma frase que diz assim: “Só aquilo que amo, se me revela”. Aqueles que estão vindo estão na busca daquilo que amam, não? Então, se lhes revelará um novo modo de agir.

Por outro lado, muitos administradores da educação têm estado sensíveis ao tema, à medida em que financiam eventos de estudos, que promovem possibilidades de mudanças nas práticas escolares, etc... E, mesmo alguns sistemas estaduais e municipais de ensino têm investido em possibilidades mais adequadas de práticas avaliativas escolares. Os Ciclos Básicos de Ensino foram instaurados dentro desta perspectiva. 



JB

Como reformular a avaliação, quando se tem um professor que utiliza instrumentos como a prova e a reprovação, como um escudo protetor, como instrumento de poder, de dominação de seus alunos? O professor, em um primeiro momento, não se sente desamparado ao se ver impedido de usar esses mecanismos ou, ao menos, de priorizá-los?


C C LUCKESI

Penso que a questão fundamental, de um lado, está na formação do educador. Não só a formação básica do curso universitário, mas sim a formação “ao longo da vida”, como sinaliza o Relatório da UNESCO para a educação do século XXI.

Nesse processo, não basta uma aprendizagem conceitual sobre uma nova modalidade de atuar em avaliação. Isso é simples. Basta ler alguns textos e responder uma ou algumas provas e... pronto. Muito mais que isso, é preciso que essa formação seja vivencial, que ela se transforme em vida cotidiana.

Infelizmente, nossa prática educativa, ainda é iluminista; daí parecer que apropriar-se dos conceitos é suficiente. Não o é! Necessitamos de aprender com a vivência. A formação pessoal para atuar com avaliação também exige que seja vivencial. É através dela, que a avaliação chegará à sala de aula, pois que é lá que o professor atua.

Para nos apropriamos dessa questão mais de perto, basta observar que, aqui e acolá, temos professores que ensinam aos seus alunos os conteúdos sobre avaliação, por exemplo, na disciplina Didática, nos cursos de nível superior, e, depois, para saber se eles aprenderam o ensinado, utilizam-se das práticas examinativas. Com isso, quero dizer que esses professores sabem bem os conceitos sobre avaliação, porém não os trouxeram para a vida cotidiana, para a prática.

Por outro lado, importa também uma mudança estrutural. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação abriu as portas para as práticas de avaliação na escola, nos seus diversos níveis, porém, importa que as estruturas administrativas escolares se flexibilizem para que a lei possa ter vida; caso contrário, será letra morta.


JB

Novas formas de organização curricular, como os ciclos de formação, pressupõem novo olhar sobre o aluno, não? Como promover essa mudança de olhar na escola?

C C LUCKESI


Volta a questão da formação e da organização escolar, assim como do sistema de ensino. Os professores necessitam de atualizar-se sobre uma pedagogia construtiva, aprendendo a trabalhar verdadeiramente com sua teoria e seus recursos, pois que os ciclos estão assentados sobre teorias construtivas.

Não basta o discurso. É preciso a prática e, para isso, é necessário uma formação consistente.

Por outro lado, importa que a organização escolar garanta as condições para que esse projeto se realize, tais como biblioteca, laboratórios, espaço físico adequado, material didático satisfatório, assim como um regimento e uma administração sadia, criativa, investida em sua tarefa e responsável.

Mas, é necessário, ainda, que hajam melhores condições de trabalho, tais como condições salariais. É impossível que um professor possa atuar da melhor forma que pode, quando necessita de trabalhar três turnos e em diversas escolas para reunir algum dinheiro para manter sua sobrevivência e a dos seus.

As políticas públicas e particulares, genericamente falando, no que diz respeito ao atendimento das necessidades econômicas básicas dos educadores tem sido perversas. Pode-se haver muita dedicação por parte do professor (e sei que os há), mas seu tempo e sua força não são infinitamente elásticos. Afinal, nos professores temos limites, como tudo o mais no mundo.

JB

A tradicional prova, que se faz periodicamente, é condenável, hoje, na escola, afinal, ou tem algum valor?


C C LUCKESI


Se a pedagogia tradicional for aquela que dá a direção à prática pedagógica, os exames, através das provas, fazem muito sentido. Aliás, elas serão verdadeiramente compatíveis com a pedagogia adotada. Elas forçarão os educandos a se enquadrarem nos modelos previamente concebidos como os únicos certos. Não haverá diálogo nem aprendizagem da vida, de forma viva.

Porém, se a pedagogia que assumimos for uma pedagogia construtiva, como por exemplo, uma pedagogia emancipatória como a do Professor Paulo Freire, ou construtivista como a de Piaget, ou dialética como as emergentes do pensamento marxista, ou integral como as emergentes das cosmovisões holísticas, os exames não fazem sentido.

Nesse contexto, fará sentido, sim, a avaliação, conforme conceituamos anteriormente. As práticas avaliativas são construtivas, as examinativas são estáticas. Para sustentar uma prática avaliativa, que é construtiva, só uma pedagogia construtiva.

Contudo, vale à pena sinalizar que não se pode confundir exames e avaliação com instrumentos dos exames ou da avaliação. Exames ou avaliação compõem modos de ser, ao passo que os instrumentos são recursos. Assim, um teste, seja ele de perguntas abertas ou fechadas, por si, nada mais é do que um instrumento de coleta de dados para o exame ou para a avaliação.

O que muda é o “para quê” ele é utilizado: para examinar ou para avaliar? Se for utilizado para examinar, ele terá um uso classificatório e seletivo; porém, se for utilizado para avaliar, terá um uso diagnóstico e inclusivo.

Então, a questão não é o instrumento, em si, mas sim a filosofia com a qual esse instrumento é utilizado.


JB

É importante que se tenha como quantificar os dados obtidos na avaliação do aluno? A escola não precisa saber quantos alunos estão em determinada situação (avançando, aquém das expectativas etc)? Não é necessário, para isso, instrumentos como notas ou conceitos? À medida que se complexifica e deixa de ser uma cobrança do que foi ensinado, a avaliação torna mais difícil também a quantificação dos resultados, não? Ao mesmo tempo, as redes escolares precisam dessa quantificação...


C C LUCKESI


Não podemos confundir conceitos e notas, que são formas de registro de resultados, com avaliação.

Os registros são necessários para manter a memória da qualidade final das aprendizagens realizadas pelos educandos, nas instituições onde percorreram sua escolaridade. Esses registros são importantes tanto para a instituição escolar, como para a sociedade, como para o estabelecimento de políticas públicas. A avaliação não impede o registro nem a quantificação dos dados registrados. Avaliação e notas e/ou conceitos são elementos de um todo, porém uma coisa não pode ser confundida com a outra.

A avaliação é a prática subsidiária da construção de resultados satisfatórios; notas e/ou conceitos são modos sintéticos de registrar a qualidade desses resultados. Ainda que historicamente esses elementos estejam em confusão na mente de educadores e educandos, assim como de administradores educacionais, importa começarmos a distingui-los.



JB

Novas formas de avaliar são vistas pelos professores como tentativas de se camuflarem resultados ruins e como imposição de que se aprovem mesmo os "maus alunos". Como mudar essa visão?


C C LUCKESI

Examinar é muito mais simples e propicia maior oportunidade de exercício do poder do que avaliar, por isso parece que a primeira modalidade é mais exigente. Todavia, não o é.

A prática da avaliação, se verdadeiramente for avaliação, é mais exigente e politicamente mais correta do que o examinar na prática educativa, dentro de uma visão democrática, é claro.

A avaliação está posta para a efetiva construção da aprendizagem, buscando a satisfatoriedade; os exames, ao contrário, permitem o acerto por acaso, pela tentativa, sem Ter a posse efetiva do conhecimento.

Numa prova de vinte questões, a exemplo, um estudante pode responder todas elas, quando efetivamente ele tem certeza de que só tem bom conhecimento sobre seis delas; mas ele arrisca. Pode ser que acerte alguma coisa e obtenha algum ponto.

Numa prática verdadeiramente avaliativa isso não deveria ocorrer, na medida em que a atividade pedagógica deveria estar voltada para construir a maestria; não algo “mais ou menos”.

Assim, a avaliação, se não for um arremedo de avaliação, será mais exigente e rigorosa que os exames.

O que ocorre no dia a dia, muitas vezes, é que se faz um arremedo de avaliação e, então, ela passa a ser desqualificada como recurso educativo. Porém, isso não é avaliação; é, sim, arremedo de avaliação. Aqui, de novo, importa não confundir uma coisa com outra.

Penso que a colocação que está posta em sua pergunta tem a ver com essa confusão teórica e prática, ao mesmo tempo, que se manifesta na conversa cotidiana dos professores. Pontos de vista, mais ou menos inconscientes, que procuramos desfazer no decorrer desta entrevista, assinalando, pontos fundamentais de compreensão e prática.


JB

Além de pesquisar e escrever sobre avaliação, o senhor tem textos publicados na área da filosofia da educação. De que forma os dois temas se unem em seu trabalho?


C C LUCKESI

Como disse anteriormente, a avaliação subsidia um Projeto Pedagógico, que se traduz em práticas educativas. E, não existe Projeto Pedagógico sem filosofia. É nesse contexto que essas áreas de conhecimento se entrelaçam em meus estudos, proposições e práticas como educador.

Cada vez mais entendo e assumo que não é possível discutir e praticar avaliação da aprendizagem, avaliação acadêmica, como qualquer outro tipo de avaliação, sem que ela esteja vinculada a um determinado Projeto, que, por si, terá uma filosofia constitutiva.
JB

Em 1983, escreveu Equívocos teóricos na prática educacional. O que flagrava já naquela época? De que equívocos estava tratando e o que suscitou essa crítica? Hoje, essas críticas se manteriam?
C C LUCKESI

Na ocasião em que publiquei aquele texto, tinha em mente denunciar o quanto nós temos um discurso teórico dissociado da prática. Denunciava a nossa esquizoidia, nossa dissociação, numa linguagem psicológica.

Considero que aquelas denúncias ainda cambem no presente. Uma mudança efetiva na história leva muito tempo. Nossa vida pessoal é muito curta para ver mudanças profundas na vida social.



Todavia, como sinalizei anteriormente, existe muito movimento na perspectiva de melhores dias. Aposto nisso, na medida em que sou um otimista.

domingo, 3 de janeiro de 2016

100 - PELA ERRADICAÇÃO DA REPROVAÇÃO EM NOSSAS ESCOLAS

Cipriano Luckesi
Contato --- ccluckesi@gmail.com




RETOMANDO CONSIDERAÇÕES DO TEXTO ANTERIOR

Sinto que devo ampliar a compreensão expressa no último post deste blog, quando foi abordado o tema “Avaliação da aprendizagem: olhar para o passado ou olhar para o futuro? ”, texto 99 deste blog.
Desejo sinalizar as questões profissional e ética que se fazem presentes na situação abordada, como em todo e qualquer ato pedagógico, um compromisso com o sucesso na aprendizagem dos nossos educandos. Afinal, foi para cumprir esse objetivo que nós nos formamos e nos colocamos disponíveis como profissionais da educação.
A proposta de encaminhamento naquele texto, e o que se segue neste, propõe aos educadores escolares um convite para a erradicação da reprovação em nossas escolas. Para tanto, há necessidade de cuidados.

NOSSO COMPROMISSO COM OS EDUCANDOS

No texto anterior --- de no. 99 --- postado neste BLOG, foram sinalizados três encaminhamentos, sendo que o primeiro veio de um relato de uma coordenadora pedagógica de uma escola, situada em algum lugar do nosso país, e os dois outros decorreram de sugestões, que dei, para sanear a situação existente, tanto nessa escola como em qualquer outra:
(1)  o primeiro encaminhamento ocorrera por decisão do staf da escola citada de promover, para a série seguinte, frente à quantidade excessiva de estudantes que, ao final do ano letivo, não havia sucesso em sua promoção de uma série para a subsequente;
(2) o segundo o encaminhamento, já sugerido por mim --- de solução para o impasse emergente de crianças sendo promovidas, sem que, segundo os parâmetros da escola, tivessem apresentado aprendizagem satisfatória na série escolar em andamento --- foi: (a) primeiro, decidir e agir coletivamente (incluindo todo o staf da escola) para, no ano letivo subsequente, ultrapassar a defasagem constatada ao final do ano letivo, que se encontrava em curso quando o relato foi feito, e (b), simultaneamente, investir na produção dos ganhos de aprendizagem necessários à série subsequente;
(3) por último, o terceiro encaminhamento foi: assumir o compromisso de, nessa ou em qualquer outra escola do país, produzir o resultado necessário como padrão cotidiano de conduta, sem, no caso, esperar o final do ano letivo para tomar decisões; ou seja, cotidianamente investir, mais e mais, para que se produzam os resultados desejados (planejados), em termos de currículo, série, idade. Em síntese, sanear em definitivo, a questão da reprovação.
Três encaminhamentos que deveriam ser praticados de forma conjunta. No caso relatado, três condutas a serem tomadas e implementadas em decorrência de uma só decisão, que depende de um compromisso profissional e ético. A seguir, um aprofundamento da compreensão dos encaminhamentos.
1. A RESPEITO DA DECISÃO TOMADA PELA ESCOLA CITADA. Quanto à decisão tomada pelo staf da escola, ao final do ano letivo, de promover o número excessivo de estudantes reprovados para a série seguinte, creio que está perfeito.
Variados argumentos permitem julgar dessa forma. A legislação educacional de nosso país, há muitos anos, mantém a possibilidade da dependência (compensação) das aprendizagens dos conteúdos de uma série anterior na série subsequente, quando isso não ocorreu na série em curso.
Claro, há uma diferença entre a situação relatada e a disposição legislativa: prescrição legislativa tem a ver com uma situação individual e a situação relatada é coletiva. Contudo, vale pensar que, se é possível para um, qual a razão para não ser viável para muitos, num caso extremo, como o relatado?
A Ratio Studiorum, documento publicado em 1599, pela Ordem dos padres jesuítas, organizando as escolas sob sua jurisdição, e que, de alguma forma, ainda atua sobre nossa prática educativa no ocidente, em questão próxima da relatada, determinava que, quando um estudante estivesse na situação “média”, que é uma situação duvidosa, não deveria ser reprovado de imediato. Deveria, sim, iniciar o novo ano letivo frequentando as aulas na classe para a qual deveria ser promovido, portanto, a subsequente no currículo escolar; caso sustentasse as novas aprendizagens, que fosse matriculado nessa classe; caso não sustentasse as novas aprendizagens, que retornasse à classe anterior.
Ainda que não seja situação absolutamente equivalente à relatada no texto anterior, importa observar que a Ratio Studiorum abria uma possibilidade de um estudante que não tivesse alcançado a plena aprendizagem, ao menos, iniciar a frequentar a classe subsequente, tendo em vista verificar sua capacidade de prosseguir. Sugeria, pois, um juízo menos taxativo.
Por outro lado, todos conhecemos as limitações dos instrumentos elaborados para a prática de coleta de dados para a avaliação da aprendizagem em nossas escolas, tais como testes, provas, tarefas..., cujas características insatisfatórias têm sido sinalizadas por mim, desde há muitos anos através de meus escritos, assim como, de forma semelhante, por outros pesquisadores.
Então, em síntese, pelas razões acima citadas, continuo a acreditar que o staf dessa escola agiu de forma adequada, tendo promovido aqueles que “ainda” não haviam aprendido aquilo que era necessário para sua série e sua idade; mas, a meu ver, poderiam e deveriam aprender na série subsequente.
2. DECISÃO OBRIGATÓRIA, PROFISSIONAL E ETICAMENTE COMPROMETIDA COM A DECISÃO ANTERIOR. Sinalizei também, no texto anterior, como segunda decisão fundamental, necessária e obrigatória, de modo simultâneo com a primeira, que esse mesmo staf escolar --- que tomou a decisão de promover os excessivos estudantes reprovados --- tome uma segunda decisão, a de, no ano letivo subsequente, garantir que todos os promovidos nas condições citadas tenham orientação e acompanhamento suficientes para:
(a) de um lado, aprender o que não aprenderam e deveriam ter aprendido, nivelando sua aprendizagem com as exigências curriculares e com os demais colegas de turma;
(b) e, de outro, para aprender os conteúdos da série para a qual foram promovidos, de tal modo que, ao final do ano letivo subsequente, não existirão mais as carências de aprendizagens detectadas ao final do ano letivo anterior como também não existirão novas reprovações. Desse modo, todos estarão integrados, de modo satisfatório, no seu contexto de sua série e de sua idade.
Uma decisão, seguida necessariamente de investimento adequado para a erradicação da reprovação nessa escola, que deverá servir de exemplo universal para todas as outras escolas do nosso país.
3. CONDUTA NOVA EM TOAS AS NOSSAS ESCOLAS. Uma vez saneadas as reprovações existentes em determinada escola, elas não mais deverão existir.
Para tanto, o staf escolar necessitará assumir que essa é a meta que se coloca a si mesmo, isto é, agir coletivamente de tal forma que todos os educandos da sua escola não passarão mais pelo impasse da reprovação.
Nesse contexto, o planejamento coletivo da instituição definirá os objetivos a alcançar e como realizá-los. A execução, fiel ao planejado, traduzirá desejos em realidades; e, a avaliação, parceira de todas as horas, será utilizada, efetivamente como avaliação, ou seja, investigação da qualidade da aprendizagem dos estudantes, fator que permitirá novas decisões e novos investimentos, com consequentes correções, caso sejam necessárias, de tal forma que todos os estudantes possam aprender o necessário, estabelecido curricularmente; e, pois, seguir saudavelmente em sua trajetória de vida.
Essa é a escola dos nossos desejos. Também a escola, cujos profissionais cumprem aquilo que anunciam, isto é, que eles “ensinam” e, consequentemente, os estudantes “aprendem”.
Conceitualmente, o “ensino”, para ser ensino, tem um correspondente, que é a “aprendizagem”. A reprovação implica na pergunta: “o que terá ocorrido com o ‘ensino’ que não produziu o seu correspondente, a ‘aprendizagem’?”  Identificar esses impasses e saneá-los é o meio para que possamos garantir que todos os estudantes de uma escola aprendam o que deveriam ter aprendido, definido no currículo escolar.
Então, varrer de nossas escolas o conceito e a prática da reprovação é meta fundamental para todas as nossas escolas, de norte a sul, de leste a oeste de nosso país.
A solução tomada pelo staf da escola citada no post 99 deste blog é emergencial; contudo, nossa escola não poderá sobreviver de soluções emergenciais; deverá sim estabelecer uma prática permanente de não admitir reprovação em seu seio, o que implica em planejamento, execução e avaliação; com subsequente vigilância sobre o andamento da prática educativa.
Vigilância não significa “controle autoritário externo ao processo”, mas sim “atenção de todos os envolvidos nas decisões” com o olhar voltado para os resultados necessários.
Isso não só é possível como já existem experiências no país com tal perspectiva. Na internet, em publicação da “Revista Brasileiros”, existe uma matéria sobre a realidade positiva da educação no município de Sobral, Ceará, onde se diz que “Em Sobral, a 240 km de Fortaleza, as nuvens carregadas passam, mas não param. Castigada pelas secas, baixas colheitas e poucas oportunidades de trabalho, metade da população vive com menos de R$ 310 mensais. Ainda assim, virou referência em ensino. Das 178 escolas públicas de excelência no Brasil, 21 estão lá. As duas piores escolas da rede municipal ficaram com nota 15% maior do que a meta brasileira para 2021”.
E a matéria acrescenta depoimentos de profissionais vinculados às escolas desse município: “Analisamos os resultados de provas e quem vai mal tem reforço. O acompanhamento é diário e nenhum aluno fica para trás”, explica Maria do Socorro”.
E, segundo o Secretário municipal de educação, é preciso entender a realidade do aluno que chega na escola pública hoje e pensar em políticas específicas para ele, sem necessariamente seguir a próxima moda da Educação. “O que o aluno do sertão precisa hoje é muito diferente do que o aluno da Finlândia precisa. O aluno que chega na escola pública de Sobral vem de uma formação cultural muito frágil. Precisamos, antes de tudo, cuidar do básico para que ele consiga avançar”, complementa. (1) Ou seja, não supor a realidade, mas estrar atento a ela.
Isso implica numa decisão coletiva do staf de uma Secretaria de Educação ou, no mínimo, de uma escola; decisão comprometida, minimamente, com a “ética adulta”, e, mais apropriadamente da “ética do serviço à vida”, como veremos a seguir.

COMPREENDENDO A QUESTÃO ÉTICA: ESTAR A SERVIÇO DA VIDA

Profissional e eticamente, como educadores, necessitamos nos tornar competentes teórica e metodologicamente para realizar aquilo que prometemos: ensinar para que efetivamente os educandos aprendam. Se eles não aprendem, o que ocorreu no sistema de ensino para que isso ocorresse?
Essa pergunta não tem por objetivo desqualificar a ação de nenhum, de nós educadores, mas, sim, convidar todos a investigar as circunstâncias que tem dificultado a aprendizagem satisfatória e removê-las ao máximo possível, de tal forma que tornem a “trilha da aprendizagem livre dos estorvos”, que dificultam a obtenção dos resultados desejados.
Certamente que existirão fatores atuantes de fora da escola, contudo, se nos apegarmos a eles, não haverá solução, desde que a responsabilidade sempre estará, supostamente, fora de nosso alcance.
Temos que nos perguntar aonde nós podemos atuar de modo novo e criativo de tal forma que nossos educandos efetivamente aprendam o necessário curricularmente estabelecido.
Para configurar um modo necessário de agir profissional e eticamente, no contexto que vimos tratando neste texto, apresento a seguir a compreensão que Lawrence Kohlberg (2) estabeleceu sobre ética, para, um pouco mais à frente, integrar essa compreensão na situação pedagógica que vimos tratando.
A concepção sobre os estágios éticos na vida humana, proposto por esse autor, servirá de pano de fundo para entendimentos, expostos subsequentemente.
 Lawrence Kohlberg foi um psicólogo norte-americano, especializado nos estudos sobre o desenvolvimento cognitivo estabelecidos por Jean Piaget. Nos idos dos anos 1960, configurou os estágios de desenvolvimento ético do ser humano, cuja proposta, eu pessoalmente gosto.
Enquanto Piaget estabeleceu os estágios e os estados do desenvolvimento cognitivo, Kohlberg estabeleceu os estágios e os estados do desenvolvimento ético. Importa lembrar que a ética tem a ver com a relação com o outro e com o mundo.
Kohlberg diz que são três os padrões éticos possíveis, estabelecidos através do desenvolvimento.
O primeiro padrão de desenvolvimento ético é o infantil, denominado por ele de “pré-convencional”, próprio das crianças até aproximadamente os sete anos de idade, que pode ser expresso pela frase: “Tudo é para mim”.
Se observarmos, facilmente teremos consciência que, universalmente, as crianças se assenhoram de tudo o que há no seu entorno como sendo para si, tais como o pai, a mãe, o irmão ou a irmã, os brinquedos, as comidas.... Ela precisa disso para alimentar seu ponto de partida na vida. Afinal, a ética infantil é do “tudo para mim”. Adultos, se forem efetivamente adultos, já não necessitam amis desse padrão de conduta.
O segundo padrão ético alcançado pelo ser humano, em seu desenvolvimento, é do cumprimento da norma, denominado por ele de “convencional”, que pode ser expresso pela frase: “Eu cumpro a norma”. “Vou até onde me pertence e respeito o que pertence ao outro”. “Cumpro a norma no que se refere a mim e cumpro a norma no que se refere ao outro”.
Esse padrão de conduta ética, no ver de Lawrence Kohlberg, é a “ética do adulto”, capaz de sustentar os limites da norma, seja no que se refere a si mesmo, seja no que se refere ao outro.
A aprendizagem e desenvolvimento desse padrão ético se inicia em torno dos sete anos de idade, quando a criança começa a descobrir que existe o outro e que ele também tem direito à vida e às suas condições. Começa a aprender que é melhor ter o outro ao seu lado como parceiro do que submetê-lo, excluí-lo ou coisa semelhante.
Então, essa é a “ética do adulto”, desde que o adulto pode psicologicamente sustentar o respeito à norma, seja em relação a sim mesmo, seja em relação ao outro. Assumir sua responsabilidade sobre seus atos; afinal naquilo que lhe pertence como direito, mas também como dever.
Afinal, para vivermos em paz na vida social, há que se respeitar a norma. Ela representa a cimentação das condições para a paz e o bem-estar entre os seres humanos. À frente e acima de todos nós, está o bem-estar da vida que nos dá direção ao agir e, à qual, servimos adultamente.
As normas nascem e se sustentam num pacto normativo entre os seres humanos, fator que exige maturidade psicológica, emocional e retidão de caráter no fazer, agir e conviver.
O terceiro nível de ética, denominado por Kohlberg de “pós-convencional”, é estar à “serviço da vida”. Esse padrão ético é o mais desenvolvido e abrangente, está para além da ética baseada na norma; está no âmbito do serviço à vida.
Estar a serviço da vida significa, além de cumprir as normas, agir para além delas tendo em vista garantir qualidade de vida para nós e para aqueles que nos cercam --- parentes, conhecidos, próximos, distantes, desconhecidos, aqueles que dependem de nossa ação.
A vida preside o modo de ser e, por estar comprometido com ela, seja diante de que necessidade for, nesse padrão ético, sempre se está ao seu serviço. Esse padrão ético tem a ver com o altruísmo. Não há como colocar-se “a serviço da vida”, se ainda pautamos nossa conduta pelo padrão da “ética infantil”, onde “tudo é para mim”.
No mínimo, para praticar a ética de “serviço à vida”, importa ter aprendido a praticar a “ética adulta”, do respeito às normas pactuadas socialmente. Para além de cumprir as normas, aquele que pratica a ética de “serviço da vida”, como sua filosofia de vida, efetivamente se dispõe a estar a serviço da vida, para que ela se manifeste e se realize, sempre na busca da plenitude. É fácil? Não. É exigente.
Exemplos desse padrão permanente de conduta são Madre Tereza de Calcutá, Irmã Dulce na Bahia. Tudo a serviço à vida; praticamente nada para si, a não ser as condições para sobreviver e continuar a servir.
Certamente que cada um de nós, não chegará a esses modelos, nem sempre estaremos praticando a ética a serviço da vida. Por vezes, no pegaremos sendo “infantis”, desejando mais para nós que para todos os outros. Quanto menos infantis formos eticamente tanto melhor. Outras vezes, seremos adultos, cumprindo as normas, o que será ótimo desde que seremos capazes de respeitar as normas para o nosso bem e para o bem do outro. Por outras vezes, em menor número de oportunidades, estaremos agindo com o padrão ético do serviço da vida. Quanto mais pudermos agir pautados por esse padrão ético, tanto melhor; a humanidade viverá melhor, porque em paz e para o bem de todos.
O melhor seria que, por mais tempo e pelas mais variadas circunstâncias pelas quais passamos, pudéssemos estar à serviço da vida. Se não for sempre, que, pelo menos, seja pela maior parte das ações em nossas vidas.
Caso não seja possível viver o padrão da ética a “serviço da vida”, pelo menos que seja no padrão da “vida adulta”; nunca, se possível, no padrão da “ética infantil”. Essa importa deixar somente para as crianças. Esse é o seu reino.
Um adulto em tamanho biológico e idade, praticando uma ética infantil, é e será estranho; contudo, tem sido uma realidade constante em todos os lugares e tempos. Quantos em todos os cantos do mundo não tomam como seu lema e agem com o lema do “tudo para mim”? Uma olhada pelos jornais nos convence de que grande parte da humanidade ainda vive e sobrevive no contexto da ética do “tudo para mim”.
Kohlberg lembra que, infelizmente, em torno de 90% da humanidade ainda pauta predominantemente sua vida pela ética pré-convencional do “tudo para mim”. Uma outra parte, muitíssimo menor da humanidade se pauta pela “ética do adulto”, respeitando e cumprindo as convenções (as normas) e uma parte bem pequena dos seres humanos pauta sua vida pela ética do “serviço à vida”, a ética pós-convencional. Mas... esse é o convite para que todos pautemos nossa vida e nossas relações por esse padrão ético. Não custa desejar, sonhar e investir para tanto.
Afinal, o que tudo isso tem a ver com a garantia do ensino satisfatório por nossa parte de educadores, e, com a aprendizagem efetiva por parte dos estudantes, nossos educandos? Veremos a seguir.

ERRADICAÇÃO DA REPROVAÇÃO E COMPROMISSO PROFISSIONAL E  ÉTICO

Aparentemente, será simples --- em uma escola, à semelhança da situação relatada no início do post anterior neste perfil do Facebook e também retomada no presente texto ---, tomar a decisão de promover um número excessivo de reprovados para a série seguinte, mesmo que supostamente não tivessem aprendido o suficiente daquilo que se estava estabelecido no currículo escolar para sua série e idade. A denominada “aprovação automática”, que já teve adeptos no Brasil, como nos Estados Unidos, através da denominada “pedagogia compensatória”, ou seja, pobres e excluídos socialmente apresentam dificuldades em aprender determinados conteúdos, então, vamos promovê-los, mesmo que não tenham aprendido. Lentamente, se descobriu que esse era um ledo engano. Promover, sem aprendizagens necessárias, é uma nova forma de exclusão social. Um engano.
Contudo, por outro lado, não será tão simples assegurar a todos os estudantes --- promovidos, sem terem atingido a mestria em sua série de escolaridade --- no ano letivo seguinte. Todos deverão receber condições de ensino qualitativamente positivas tanto no que se refere aos conteúdos nos quais foram reprovados como nos conteúdos próprios da série seguinte. Mas, essa é a tarefa que se impõe, tendo em vista fugirmos da denominada “pedagogia compensatória”, que é política e socialmente excludente. Nesse contexto, também não será tão simples assegurar que em nossas escolas a reprovação será erradicada.
Para isso, nesse espaço de compreensão, torna-se necessário que, minimamente, tenhamos atingido o “padrão adulto” de conduta ética, isto é, “cumprir a norma”, que, no caso, determina que todo estudante receba um ensino qualitativamente positivo, de tal forma que aprenda os conteúdos cognitivos, de procedimentos e de atitudes necessários segundo o estabelecido para sua série e idade.
Porém, o ideal, nessa e em outras circunstâncias, é que nos coloquemos no padrão ético pós-convencional, de “serviço à vida”. No contexto desse padrão ético, não mediremos esforços para que nossos educandos aprendam o que necessitam aprender e, então, não imputaremos a eles aquilo que pertence a nós como profissionais: ensinar bem.
Temos uma tradição, que tem suas origens em longas datas do passado, de atribuir aos estudantes a responsabilidade por suas aprendizagens insatisfatórias. A frase mais comum em nosso cotidiano é de que “os estudantes, hoje, não desejam investir o suficiente em seus estudos e formação, desde que investem, sim, em seus brinquedos, jogos e outras coisas mais. Menos nos estudos”.
Então, nesse contexto, cabe perguntar: “Será que nossas atividades de ensino têm sido tão vivas de tal forma que consigam atrair nossos estudantes?” “Será que nossos olhos brilham pelos conteúdos que ensinamos de tal forma que os nossos estudantes nos sigam com seus olhos a brilhar tendo em vista a importância da aprendizagem dos conteúdos ensinados?”
A situação exposta e aborda no texto no. 99 deste blog, assim como as soluções indicadas exigem de todos nós padrão profissional e ético, no mínimo, de “adultos” e idealmente de “serviço à vida”, de tal forma que nossa ação seja incansável para que todos os nossos estudantes aprendam o necessário (3) daquilo que ensinamos. E... vale lembrar que essa não é uma tarefa e um padrão necessário exclusivamente do educador em sala de aula, mas sim de todo os staf escolar; assim como na vida em geral.
Diretor de escola, coordenador pedagógico e professor, conjuntamente são os responsáveis pela erradicação da reprovação em nossas escolas. São responsáveis conjuntamente pela qualidade positiva tanto do ensino quanto da aprendizagem de todos os estudantes de sua escola.
Se estivermos, de fato, a serviço de nossos estudantes eles aprenderão, sim, o necessário. Fui uma criança multi-repetente e deixei de sê-lo, quando um abençoado professor disse a mim e a outros colegas, que se encontravam na mesma situação --- “Se vocês forem bem ensinados, aprenderão; eu vou cuidar de vocês”. Desse dia em diante, nunca mais tive alguma reprovação em minha vida de estudos.
Então, é possível. Acima, citei a situação de um município em nosso país, que vem erradicando a reprovação em suas escolas. Para tanto, importa que tomemos o destino de nossas escolas nas mãos --- mãos da organização escolar, Secretarias de Educação, escolas, educadores.
Esse é o convite que dirijo a todos que vierem a ler esse texto: “Vamos erradicar, com nossas atividades de educadores escolares --- conjuntamente, diretores, coordenadores pedagógicos e professores --- o fenômeno da reprovação”.
A reprovação não faz sentido. Nossas crianças são sadias o suficiente para aprender o que está estabelecido em nossos currículos; sua aprendizagem dependerá de nosso investimento profissional e ético.
Boa sorte a todos nós, aos nossos educandos e à educação deste país!

--------------------
(1)     Ver Revista Brasileiros, matéria --- Cidade do sertão acaba com progressão continuada e vira modelo de educação no Brasil
(2)     Lawrence Kohlberg (Nova York25 de Outubro de 1927 - Boston19 de Janeiro de 1987), foi um psicólogo norte-americano e professor na Universidade de Chicago, bem como na Universidade Harvard. Especializou-se na investigação sobre educação moral, sendo mais conhecido pela sua teoria dos níveis de desenvolvimento moral. Muito influenciado pela teoria do desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget, o trabalho de Kohlberg refletiu e desenvolveu as ideias de seu predecessor, ao mesmo tempo criando um novo campo na psicologia: desenvolvimento moral.

Caso o leitor esteja interessado a adentrar um pouco mais no mundo de Kohlberg poderá ver na internet em Wikipédia o nome de Lawrence Kohlberg, de onde retirei os dados citados nesta nota. Existem outras matérias sobre esse pesquisador disponíveis nos buscadores da internet.

(3)     Em alguns escritos meus, de tempos passados, o leitor poderá encontrar, ou já ter encontrado em suas leituras, referência a “aprendizagem do mínimo necessário”, como um padrão de conduta a ser desejado. Desejo esclarecer que “o mínimo necessário” não é equivalente e “mínimo possível”. Todas as vezes que me referi ou me refiro ao “mínimo necessário “ ou ao “necessário”, efetivamente, estou me referindo à aprendizagem necessária estabelecida curricularmente.


________


OBSERVAÇÃO – Na aba direita deste blog está publicado o índice de todos os textos publicados neste perfil. O leitor poderá cotejá-lo, escolhendo conteúdos que possam interessar-lhe.