segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

117 - PARA QUÊ AVALIAR?

Cipriano Luckesi
Contato --- ccluckesi@gmail.com


Recentemente participei de um evento, cujo tema a ser abordado era a pergunta: “Para quê avaliar?” A resposta veio-me de imediato: “Para produzir resultado satisfatório da ação que estivermos a realizar”.
De fato, é esse o objetivo a ser alcançado ao se praticar atos avaliativos no decurso de uma ação. O ato de avaliar é um “ato de investigar a qualidade da realidade”, fato que implica que caberá ao gestor da ação decidir o uso que fará dos resultados desse ato investigativo. A avaliação, como ato investigativo, “revela” a qualidade da realidade; cabe ao gestor decidir como usará esse resultado.
Isso ocorre sempre que um ato avaliativo é praticado, seja na natureza, seja nas decisões pedagógicas ou administrativas, seja na vida em geral. A vida aposta no sucesso da ação, mas, para chegar nele, necessita prosseguir tomando ciência da qualidade daquilo que já produziu e, se necessário, decidindo como prosseguir: “já atingi um nível satisfatório com a ação, que estou executando”? Se sim, ok. Se não, que investimento novo irei fazer para atingir esse nível de resultado?
Nosso sistema nervoso opera dessa forma. Está em constante processo de investigação do estado de nossa temperatura, nossos hormônios, nosso sangue, nossa respiração... e, constantemente, nosso centro cerebral autônomo --- sem mesmo estarmos cientes de que decisões está tomando --- as realiza em busca restabelecer o equilíbrio de nosso organismo, quando seu sistema avaliativo revela algum desequilíbrio em nosso organismo.
Para nosso centro cerebral de decisões, sempre haveria equilíbrio; contudo, ocorre que, psicologicamente, tomamos decisões no dia a dia que nem sempre nosso centro cerebral consegue redirecionar ações necessárias para produzir o equilíbrio. Afinal, somos bem teimosinhos. Mas... ele tenta. Quando não consegue, produzimos pequenos desvios, tais como dor de cabeça, enxaqueca, alguma dormência, ou, por vezes, grandes desvios... O nosso cérebro, através de seu segmento autônomo, serve-se de um sistema autoregulativo, investigando a qualidade de tudo aquilo que ocorre em nosso corpo e, imediatamente, corrigindo desequilíbrios, sempre que possível. Um perfeito centro de avaliação e de tomada de decisões em busca da satisfatoriedade.
Por outro lado, vale observar que, no cotidiano, todos os seres humanos, como todos os outros seres vivos, “apostam no sucesso de sua ação”, sejam quais forem essas ações, e, em função disso, todos os atos avaliativos inconscientes ou conscientes, tendem a dar-lhes suporte para que consigam atingir os resultados desejados. Ninguém de nós, em nossa ação, deseja e/ou investe num resultado negativo. A vida e nós também desejamos sempre o sucesso. Agimos para obter sucesso em nossa ação, ainda que possamos não atingí-lo.
Os esclarecimentos acima referem-se ao uso natural do ato avaliativo. Contudo, no que se refere ao uso dos resultados do ato avaliativo pelo ser humano em suas ações, o que pode acontecer?
Nesse caso, são dois os usos possíveis dos resultados do ato avaliativo, que podem ser deliberadamente escolhidos pelo gestor da ação, que, no caso, pode ser uma ação que gera resultados para si mesmo (individuais) ou que gera resultados para um coletivo. Numa escola, como instituição, tanto importa investir nos resultados individuais (a aprendizagem dos estudantes), como nos resultados coletivos (o desempenho da escola como instituição).
Um dos usos possíveis dos resultados do ato avaliativo é o “uso classificatório”, que ocorre da seguinte maneira: com os resultados a respeito da “qualidade da realidade”, revelada pelo ato avaliativo, o gestor da ação, tendo presente uma “escala de qualidades”, decide classificar essa realidade em algum grau de uma escala de qualidades, que varia da mais positiva para a menos positiva. Esse uso classificatório dos resultados do ato avaliativo considera que esse objeto do ato avaliativo está plenamente construído com as características que está apresentando aqui e agora. Assume-se que esse objeto está pleno, inteiro, pronto. Então, só resta classificá-lo com base nos resultados de um ato avaliativo.
O outro uso possível dos resultados do ato avaliativo é o seu “uso diagnóstico”. O que significa isso? Ao invés de nos perguntarmos “em que lugar de uma escala de qualidades classifico este objeto de investigação”, pergunto, “essa qualidade revelada por essa realidade já é satisfatória”?
Caso a resposta seja positiva, não há necessidade de investir mais na busca da satisfatoriedade, desde que ela já fora atingida; mas, caso a realidade, através do ato avaliativo, não apresente a qualidade desejada e necessária, pode-se decidir investir mais e mais na busca do atendimento da satisfatoriedade desejada; como também, pode-se decidir “deixar as coisas como estão”, uma decisão nada saudável.
O uso classificatório da qualidade da realidade encerra a possibilidade da ação, desde que está aquilo que está sendo avaliado é classificado; mas, o uso diagnóstico sempre possibilita novos investimentos na busca da satisfatoriedade desejada, caso esse efetivamente seja o desejo e a decisão do gestor da ação.
Diante dessas considerações, vale à pena ver que, na história da educação, esses dois usos dos resultados do ato avaliativo sempre estiveram, de alguma forma, presentes, sabendo, porém, que predominou e tem predominado, em última instância, quase que de forma exclusiva, o uso classificatório.
Na pedagogia jesuítica, portanto, do lado católico, normatizada na obra “Ratio Studiorum”, publicada em 1599, configuraram-se as duas modalidades de uso dos resultados do ato avaliativo, acima discriminados.
De um lado, o uso diagnóstico --- configurado na “Pauta do Professor” ---, recurso que deveria ser utilizado pelo professor no decorrer do ano letivo, tendo em vista acompanhar o andamento de cada estudante em sua dedicação aos estudos e sua aprendizagem; e, de outro, o uso classificatório, praticado ao final de cada ano letivo pela Banca Examinadora, que deveria classificar o estudante em “promovido” ou “não-promovido” para a classe subsequente, tendo presente seu desempenho dos exames, juntamente com as considerações registradas na “Pauta do Professor”. Havia ainda a possibilidade de uma classificação em “médio”, que era assumida como uma qualidade duvidosa, razão pela qual o estudante passava a frequentar as aulas da classe subsequente sem ser matriculado nela; caso suportasse suas exigências, permanecia nela; caso não suportasse, retornava à classe anterior.
Com o decorrer do tempo, praticamente, nos sistemas de ensino nos países do ocidente em geral, sobreviveu quase com exclusividade o uso classificatório dos resultados do ato avaliativo. A “Pauta do Professor”, como recurso de acompanhando e auxilio ao estudante em sua aprendizagem, desapareceu. Permaneceram as provas com características bem diversas do rigor metodológico necessário à uma investigação avaliativa, como já sinalizei em diversas ocasiões neste blog, assim como nos livros que já tornei público..
Do lado protestante, John Amós Comênio, em sua obra “Didática magna”, também insistiu na orientação de que a aprendizagem tivesse prioridade em todos os atos do professor e da escola, contudo, não deixou de dar papel significativo ao uso classificatório dos resultados do ato avaliativo, através dos exames escolares, previstos na própria “Didática magna” (1632), como também na normatização  “Leis para a boa ordenação da escola” (1657). Comênio investiu menos que a “Ratio Studiorum” no uso classificatório dos resultados do ato avaliativo, porém, não deixou de dar-lhe um papel na prática pedagógica.
Do século XVI ao século XX, a orientação do uso classificatório dos resultados do ato avaliativo foi predominante e crescente com o passar dos anos, chagando quase que de modo exclusivo no seu uso em nossas escolas, até mesmo nos dias correntes do presente.
Em 1930, um jovem educador norte-americano, Ralph Tyler, à época, com 28 anos de idade, iniciou a apregoar a necessidade do “uso diagnóstico” dos resultados do ato avaliativo, tendo em vista garantir o sucesso da prática de ensinar nas escolas.
Sua recomendação era: “ensine alguma coisa, diagnostique a qualidade da aprendizagem efetuada; se a aprendizagem se manifestar satisfatória, siga em frente; se for insatisfatória, ensine de novo”. Dessa forma, Tyler propunha o “uso diagnóstico” dos resultados do ato avaliativo.
Da data de suas proposições aos nossos dias, já se passaram quase noventa anos e, ainda, estamos profundamente comprometidos com o “uso classificatório” dos resultados da avaliação: “aprovado/reprovado”; “nota 10,0, nota 2,0, nota 5,0” ... e outras mais. Esse é o modelo que predomina em nossas escolas, de norte a sul, de leste a oeste do país. Em outros países também, sendo que alguns já conseguiram sistemicamente ultrapassar esse modelo, tais como Canadá, Dinamarca, Finlândia e outros poucos.
O convite deste texto é para integrar aquilo que a história já nos ensinou como significativo para a efetividade saudável do ensino-aprendizagem em nossas escolas, afim de que todos aprendam os conte4údos e condutas necessários, estabelecidos em nossos currículos escolares. Mas, para além disso, até para além do necessário, aprender a usar diagnosticamente os resultados dos atos avaliativos em sala de aula, como subsídio para nossas decisões na perspectiva de construir, junto aos nossos estudantes, ao mesmo tempo as aprendizagens necessárias e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de suas capacidades criativas.
Então, vamos lá. Vamos aprender e efetivamente praticar o “uso diagnóstico” dos resultados do ato de avaliar no decurso de nossas aulas no andar do ano letivo, tendo em vista que nossos estudantes aprendam o necessário, e, para além do necessário, aprendam a ser criativos, responsáveis, de tal forma que possam buscar no meio social a sua equalização. Todos têm direito a partilhar dos bens sociais.
A educação não é e nem será o “único” meio para os processos de equalização social, sonhado e desejado por todos nós, contudo, com certeza, será um recurso fundamental, que está em nossas mãos, de educadores, para nos servirmos dele da forma mais significativa possível. Usar diagnosticamente os resultados do ato avaliativo na prática do ensino-aprendizagem está em nossas mãos fazê-lo, que, com certeza, subsidiará muitos e muitos resultados positivos, seja para a escola como instituição, mas sobretudo para os estudantes, como cidadãos deste imenso país.
Fica aqui o convite a todos os educadores e educadoras de nossas escolas. Somos uma força: em torno de 2.000.000 (dois milhões) de professores atuando na Educação Básica, em 150.000 (cento e cinquenta mil) escolas, instaladas em nossos 5.500 (cinco mil e quinhentos) municípios. Os números são grandes. Com eles, importa reconhecer a força que temos em mãos.
O convite está posto, basta decidirmos mudar os rumos de nosso modo de agir no que se refere ao modo de nos servirmos dos resultados do ato avaliativo em nossas atividades pedagógicas; fator que implica em decidir todos os dias, em nossa vida profissional, de que nossa ação pedagógica fará diferença na vida de cada um dos estudantes que tivermos em nossas salas de aula.


O convite é para passarmos do uso classificatório para o uso diagnóstico dos resultados do ato avaliativo, subsidiando nossos atos educativos engajados e comprometidos socialmente. Isso depende de cada um de nós individualmente e de todos nós coletivamente. Temos em nossas mãos uma força transformadora individual e socialmente. Qual a razão para não nos servirmos dela? Usualmente, na quase totalidade das vezes, podemos ultrapassar as dificuldades emergentes em nossas escolas e salas de aula, garantido que cada estudante tenha os recursos necessários para “chegar à luz do sol”.





domingo, 12 de fevereiro de 2017

116 - AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM NO ENSINO SUPERIOR

Cipriano Luckesi
Contato --- ccluckesi@gmail.com




01. O que caracteriza a avaliação da aprendizagem no ensino superior?


Praticar a avaliação da aprendizagem no ensino superior é um ato que, epistemológica e metodologicamente, equivale a qualquer outro ato de avaliar, ou seja, ela é um modo de “investigar a qualidade da realidade; e, no caso dos projetos de ação, se necessário, proceder a uma intervenção para correção da qualidade dos resultados”. Isso implica em compreender o que é propriamente “investigar a qualidade da realidade”, ao lado do “estabelecimento dos recursos metodológicos” necessários para que isso ocorra.

Sendo desse modo, o que distingue a avaliação da aprendizagem no exercício do ensino superior é o seu objeto de investigação, como, de forma semelhante, o que distingue a prática da avaliação da aprendizagem na educação infantil é o seu objeto de estudo; o mesmo ocorrendo para os outros níveis de escolaridade.

Observar que o objeto final dessa prática investigativa na avaliação da aprendizagem é o desempenho do estudante em decorrência da sua aprendizagem no que se refere aos conteúdos ensinados, que tem a ver com a apropriação de conhecimentos (informações), formação de habilidade e construção de atitudes. Esse objeto de investigação, sob o aspecto de que ele se dá em todos os níveis de escolaridade, é equivalente em todos os níveis de escolaridade. O que distinguirá esse objeto, quando tomado pelos níveis de escolaridade, é o seu nível de complexidade, por si, compatível com o nível de desenvolvimento do estudante com o qual se trabalha.

Desse modo, os conhecimentos (informações) oferecidos aos estudantes da educação infantil não são equivalentes aos conhecimentos oferecidos aos estudantes do ensino fundamental, do médio ou do superior. Os conteúdos até poderão ser os mesmos --- por exemplo, história do Brasil ---, contudo, o seu nível de complexidade apresentar-se-á completamente diferente ao transitar de um nível de escolaridade para outro. Na educação infantil oferecer-se-á a história do Brasil quase como contos de fadas; já, no ensino superior, oferecer-se-á as possibilidades de compreender e apropriar-se das múltiplas e complexas relações sociais e históricas constitutivas do país ao longo do tempo. Ainda que seja o mesmo conteúdo, o que o adulto pode compreender não é o que a criança pode compreender e assimilar. Nesse contexto, é possível compreender que o que distingue a avaliação no ensino superior é o seu objeto de estudo: o desempenho dos estudantes do ensino superior na aprendizagem dos conteúdos que estão lhes sendo ensinados.

Acresce-se a isso, o fato de que a relação pedagógica, nesse nível de escolaridade, é realizada entre adultos, sendo que, mesmo nessa circunstância, o professor continue a ser o adulto da relação pedagógica,[1] isto é, aquele que lidera e dá o tom às atividades de ensino e aprendizagem. O educador é o líder da sala de aula.

Em todos os níveis de escolaridade, o professor necessita de estar nesse lugar de “adulto da relação pedagógica”, à medida que é ele o responsável pelo “tom” da sala de aula, ou seja, pela sua liderança, pelo seu entusiasmo, pela disciplina, pelas relações interpessoais saudáveis, pelo investimento não que se faz..
.
Do outro lado, o estudante também já é um adulto e, como tal, necessita ser tratado, desde que já tem uma história de vida, múltiplas experiências e compreensões que uma criança não tem; ainda que possa --- como todos nós --- determinado por múltiplas circunstâncias do passado, traumáticas ou não. As traumáticas deixam suas marcas que atuam intempestivamente de usualmente de uma forma negativa; as construtivas usualmente atuam a favor de uma vida saudável.



02. Um pouco de história para se compreender aonde estamos


No modelo de escola que se implantou no ocidente, a partir do século XVI, entre outros, havia o desafio --- com o qual nos deparamos ainda hoje, ainda que em outra perspectiva --- de saber se o estudante havia aprendido o que deveria ter aprendido, assim como saber com que qualidade isso ocorreu.

Na Ratio Sudiorum (Ratio atque institutio studiorum Societatis Jesus, Ordenamento e institucionalização dos estudos na Sociedade de Jesus), documento publicado em 1599, pela Ordem dos Padres Jesuítas, encontra-se um capítulo sobre “Os exames escritos e orais”, cujas determinações, de certa forma e em certo sentido, são cumpridas até os dias de hoje em nossas escolas, em todos os níveis de escolaridade, certamente com alguns acirramentos, acrescentados ao longo da história.

Na Ratio Studiorum, estão configurados dois modos de acompanhamento da aprendizagem do educando: a Pauta do professor e os Exames escritos e orais.

A Pauta do professor era o que, hoje, denominamos de caderneta, porém, com detalhes do caminho percorrido pelo estudante. Nela, seriam anotados as condutas e aprendizagens de cada um dos estudantes --- na época, o educando recebia o nome de “estudante” --- ao longo do ano letivo. Propriamente seriam os registros do acompanhamento do estudante durante o ano letivo.

Essas anotações deveriam ser utilizadas, pela Banca Examinadora, organizada por ocasião dos exames do final do ano letivo, responsável pela promoção (ou não) do estudante, conjuntamente com os resultados dos exames escritos e orais, que ocorriam exclusivamente nesse período.

Ao longo dos mais de quatrocentos anos que nos separam da data de 1599, perdemos o hábito de nos servirmos da “Pauta do professor”, com sua base no cuidadoso acompanhamento e reorientação dos estudantes sob nossa responsabilidade, e, então, vagarosamente, na história, fomos nos apegando, mais e mais, aos exames escritos e orais --- hoje, exclusivamente escritos.

Os exames, segundo esse documento, deveriam ocorrer uma única vez ao final do ano letivo. Hoje, praticamente não nos servimos da Pauta do professor e praticamos exames em vários momentos do ano letivo. Usualmente, no ensino fundamental e médio, os exames são praticados nos denominados bimestres letivos e, no ensino superior, em dois momentos da duração de uma disciplina --- usualmente com a duração de um semestre letivo ---, com o acréscimo de uma prova final para o estudante ainda não obteve uma média de notas, considerada a necessária para a aprovação.

A longo do tempo, priorizamos os exames, descuidando do acompanhamento. O acompanhamento tinha a ver com a construção da aprendizagem e com a formação do educando; os exames com a promoção de uma classe para a subsequente no currículo escolar. Hoje, transformamos o acompanhamento em média de notas[2] ao longo da duração da disciplina que ensinamos, isso é, em exames escolares.

Os exames, tanto nos inícios da escola moderna, no século XVI, como hoje, tem como centro de sua atenção a classificação do estudante, minimamente, em “aprovado” ou “reprovado”.

Parece --- não tenho certeza factual histórica --- que, com a adesão ao Sistema Internacional de Pesos e Medidas, pós Revolução Francesa, adotamos as escalas classificatórias na vida escolar, que, hoje, de modo usual, podem, variar de 0 (zero) a 100 (cem) ou de 0 (zero) a 10 (dez), em conformidade com o padrão adotado em épocas diferentes da história educacional de cada país. Hoje, no Brasil, predomina a escala de 0 (zero) a 10 (dez). A razão dessa percepção é que nos servimos de estruturas decimais de medidas, equivalente aos modelos utilizados em outras práticas com “pesos e medidas”, tais como metro dividido em decímetros, em centímetros, em milímetros, etc... Nossas notas escolares funcionam com u m sistema decimal também: de 0 (zero) a 10, com as múltiplas divisões em décimos. Percebe-se a coincidência de uso do Sistema Internacional de Pesos e Medidas, que, no Brasil foi adotado em 1862, mas não temos ainda a confirmação do fato histórico de quando se passou a utilizar esse modelo de notação para os resultados escolares.
 
E, mesmo quando um sistema de ensino ou uma escola adota o registro dos resultados da aprendizagem por conceitos (escala de letras ou escala de adjetivos), usualmente são compreendidos e/ou traduzidos por meio de uma tabela de valores numéricos, que sempre serve de parâmetro para os atos classificatórios, isto é, conceitos são atribuídos por referência aos registros numéricos inteiros ou decimais.
A primeira vez que se iniciou a falar de avaliação da aprendizagem como diversa dos exames escolares ocorreu em torno de trezentos e vinte anos após a publicação da Ratio Studiorum. Em 1930, um jovem educador norte-americano, Ralph Tyler, aos 28 anos de idade, após um doutoramento, iniciou a propor que não era possível permanecer com a tradição de altos níveis de reprovação na escola; em torno de 70% dos estudantes nos USA eram reprovados. Era preciso encontrar uma metodologia pela qual 100 (cem) crianças ingressassem na escola e 100 (cem) crianças aprendessem o que deveriam aprender.

O método proposto por ele para obter esse sucesso foi o mais óbvio que podemos imaginar e que, fora da escola, o utilizamos quando desejamos resultados satisfatórios: (01) ensine um conteúdo; (02) diagnostique a aprendizagem: (03) se o estudante aprendeu, ótimo, segue em frente; se não aprendeu, ensine de novo. Desse mesmo modo agimos em qualquer ação que praticamos. Investimos na produção de algum  resultado, o avaliamos; caso o resultado de nossa ação ainda não seja satisfatório, investimos mais na perspectiva de obter resultado mais satisfatório.

Afinal, essa prática parece ser óbvia para quem busca o sucesso da própria ação; porém, difícil de ser praticado na escola, envolvida com muitos fatores socioculturais, extra avaliação, tais como autoridade, disciplina, controle social, castigo.

Tyler faleceu em 1994 sem ver o efetivo uso dessa sua simples e óbvia proposição pelos educadores nas instituições de ensino.

No Brasil, sob influência dos modelos norte-americanos, iniciamos a tentar compreender e praticar a proposta de Tyler em torno do final dos anos 1960 e inícios dos anos 1970. De lá para cá, já se passaram quarenta e mais anos e, infelizmente, ainda não conseguimos transitar do ato de examinar para o ato de avaliar, tendo em vista o acompanhamento da aprendizagem dos nossos educandos. Acompanhamento quer dizer identificação da qualidade da situação, através de investigação, e intervenção de correção, se necessária.


03. Epistemologicamente, que é o ato de avaliar?

O ato de avaliar, na instituição de ensino, do ponto de vista individual de cada estudante, tem por objetivo diagnosticar seu desempenho na aprendizagem dos conteúdos ensinados, subsidiando novas decisões na perspectiva de atingir os resultados qualitativamente desejados.

Se se constata, através da avaliação, que o estudante já atingiu a qualidade desejada nos resultados da ação pedagógica, ótimo; caso não tenha sido atingido esse nível de qualidade, novos investimentos são e serão necessários para que se obtenha o que se deseja, estabelecido nos momentos decisórios de planejamento da ação.

Nesse contexto, não se classifica o educando --- aprovado/reprovado ---, mas sim diagnostica-se sua aprendizagem, tendo em vista garantir-lhe a qualidade necessária da aprendizagem, estabelecida no currículo escolar e no planejamento de ensino, ambos adequados ao seu nível de desenvolvimento, idade e série.

Os exames, que são classificatórios, são úteis nas ocasiões de concurso, onde o candidato está em busca de uma vaga numa instituição ou numa premiação. Já a avaliação é diagnóstica, subsidiando novos investimentos até que se chegue aos resultados desejados; por isso, adequada a ser utilizada na construção de resultados satisfatórios no âmbito de uma ação.

A avaliação é parceira na caminhada de todo e qualquer gestor. Gestor é aquele que “gesta” resultados. O educador na sala de aulas é o seu gestor, aquele que atua para produzir resultados positivos; o mesmo diga-se do diretor de uma instituição de ensino, pois que, em seu papel, deve trabalhar para “gestar” os resultados de sua instituição. De forma semelhante, em todas as instâncias educativas institucionalizadas, o gestor, esteja em que nível profissional estiver, tem por obrigação conduzir a ação para que produza resultados positivos --- escola, secretarias de educação, ministério da educação. A avaliação será sempre a parceira do gestor a anunciar o sucesso de sua ação ou a necessidade de mais investimentos.



04.  Metodologicamente, como se pratica a avaliação?

O ato de avaliar a aprendizagem do educando que, epistemologicamente, se configura como uma investigação da qualidade da realidade, à semelhança de qualquer tipo de investigação, assenta-se sobre dados da realidade e de sua subsequente leitura; no caso, uma leitura de sua qualidade. A ciência, que investiga “como a realidade funciona”, também assenta-se sobre dados da realidade e sua subsequente leitura.

Então, para praticar a avaliação da aprendizagem estudante, em primeiro lugar, é necessário a coleta de dados, cujo instrumento (de coleta de dados) deve ter minimamente, as seguinte características: ser sistemático --- cobrindo todos os conteúdos essenciais ensinados ---, ser compreensível --- importa que o estudante compreenda o que se lhe pergunta ---, ser compatível com o ensinado --- solicita-se ao educando desempenho satisfatório naquilo que efetivamente foi ensinado, em termos de conteúdos, linguagens utilizadas, metodologia de abordagem dos conteúdos ensinados, dificuldade e complexidade dos conteúdos; nada fora disso ---; ser preciso no que se solicita  --- educador e educando compreendem com o mesmo significado o que se solicita; o significado do que se solicita não pode ter equívocos; não se pode introduzir “quebra-cabeças para ver se os estudantes os resolvem”[3].

Feita a coleta de dados sobre o desempenho do estudante em sua aprendizagem, o ato de avaliar exige, como segundo passo, que o desempenho, descrito pelos dados, seja qualificado.

Isto se faz pela comparação entre os dados da realidade do desempenho do educando com um critério de qualidade. Critério de qualidade é o padrão de qualidade necessário para que se aceite como satisfatório o que está sendo avaliado. No caso, qual é a conduta desejada como satisfatória de um estudante na aprendizagem de um determinado conteúdo?

É esse comparação que possibilita afirmar se a realidade descrita preenche os requisitos da qualidade desejada. Propriamente esse é o ato de avaliar, que se expressa como o ato de “atribuir qualidade à realidade”, tendo por b ase um critério de qualidade[4].

E, em terceiro e último lugar, caso a qualidade desejada ainda não tenha sido atingida, há necessidade de uma intervenção  ---- no caso da instituição de ensino: ensinar de novo até que se chegue ao resultado desejado; reorientação --- para que o desempenho do estudante chegue à qualidade necessária e desejada.

Esses três segmentos metodológicos do ato de avaliar exigem cuidados por parte do educador, assim como do sistema de ensino (direção da escola, secretários de educação, ministro da educação do país), isto é, importa rigor metodológico no uso desses passos, afim de que a avaliação possa efetivamente ser avalição e, dessa forma, cumprir sua função.



05.  Acompanhamento e certificação

Perguntar-se-á: “Então, diante da proposição de utilizar o acompanhamento como uma recurso de construção da aprendizagem, abolir-se-á a certificação do estudante, desde que seguiremos diagnosticando e reorientando sempre? ”

De forma alguma. Ao contrário, praticaremos uma certificação mais plena do que as atuais, baseadas nos exames escolares e nas médias de notas.

No modelo, ainda vigente em nossas instituições de ensino, a certificação tem sua base nas médias de notas escolares, fato que pode nos leva ao engano[5].

Hoje, em nossas instituições de ensino, um educando poderá ser certificado por uma média de notas (aliás, dessa forma tem ocorrido), o que pode significar que ele sabe mais um conteúdo do que outro, porém a média de notas diz que ele tem a posse satisfatória de todos eles.

Para facilitar a compreensão dessa fenomenologia, um exemplo: um estudante aprendeu bem adição em matemática e obteve nota 10 [dez], contudo, aprendeu muito pouco do conteúdo subtração e obteve nota 2,0 [dois]; pela média, sua nota final será 6,0 [seis], nota que aprova).

Essa média --- obtida entre notas escolares com valores numéricos diversos e que certifica o estudante no desempenho de sua aprendizagem --- nos engana, pois, no caso do exemplo acima, parece que ele aprendeu igualmente adição e subtração, mas, de fato, só aprendeu adição. Isso ocorre com o ensino-aprendizagem de todos e quaisquer conteúdos escolares.

De fato, para ser adequada, a aprendizagem deveria ser satisfatória tanto em adição como em subtração, pois que esses conhecimentos e habilidades serão utilizados pelo estudante, inclusive em sua escolaridade subsequente. Essa distorção praticada pelas médias de notas escolares conduz ao fato de que estudantes prosseguem na vida escolar “sem base”, como se diz no cotidiano das instituições de ensino. A média de notas indica que o estudante aprendeu o que deveria ter aprendido, mas isso só de forma aparente, pois que aprendeu o conteúdo de um tópico de conhecimentos, mas, não aprendeu de outro, que está incluído na média.

Numa verdadeira prática de avaliação --- diagnóstico e reorientação ---, não haverá necessidade de certificação por uma média de notas; haverá, sim, uma certificação (testemunho) pelo fato de que o estudante foi ensinado, acompanhado e aprendeu o que deveria ter aprendido.

Através da avaliação, que sinaliza ao gestor a necessidade de reinvestimento na aprendizagem do estudante, ele chegará a uma aprendizagem satisfatória do que deve aprender e, então, receberá uma certificação (um testemunho oficial), que estará afirmando que, no caso, aprendeu plenamente todos os conteúdos ensinados como essenciais. Então, não haverá o engano, como vimos, próprio das médias entre notas escolares.

A certificação continuará a existir, porém como um testemunho do educador de ele acompanhou esse estudante e trabalhou para que ele aprendesse o que teria que aprendeu e... aprendeu.

O uso da avaliação e não dos exames no percurso escolar é o recurso a ser utilizado no caminho para o sucesso do ensino por parte do professor e da aprendizagem por parte do educando. Os exames permanecerão como recursos de seleção.

Como a escola, por si, não é e não deve ser seletiva, deve, em seu espaço interno, servir-se da avaliação e não dos exames. Estes serão úteis e necessários às atividades seletivas, como são os concursos, onde o candidato compete para conseguir uma vaga; mas, certamente, desde que praticados com o rigor metodológico, como indicado acima, na orientação sobre coleta de dados para a avaliação.



06.  Consequências do uso das práticas avaliativas no acompanhamento d dos estudantes



Quando se pensa em aprendizagem satisfatória por parte de todos os estudantes, a avaliação é parceira não só do sucesso da atividade do educador e da instituição, à qual pertence, mas sobretudo parceira da democratização da sociedade. O educador, centrado no desejo e no investimento da aprendizagem de todos os seus estudantes, contribui não só para a educação dos estudantes tomados individualmente, como também para a elevação sociocultural e ética de uma população, o que significa melhor forma de viver e conviver, respeitando os direitos e todos e reivindicando os seus próprios direitos, uma sociedade e onde direitos e deveres são a mola mestra da vida.




 NOTAS



[1] Sobre o significado do “adulto da relação pedagógica”, ver Educação, Ludicidade e Prevenção das Neuroses Futuras: uma proposta pedagógica a partir da Biossíntese, no site http://www.luckesi.com.br, na página “Artigos” / “Educação e lçudicidade”.
[2] A respeito de nota escolares, ver o livro de Cipriano Carlos Luckesi, Sobre notas escolares: distorções e possibilidades, Cortez Editora, São Paulo, 2014.
[3] Sobre coleta de dados para a avaliação, ver de Cipriano Carlos Luckesi, Avaliação da aprendizagem componente do ato pedagógico, Cortez Editora, São Paulo, 2012, especialmente nas páginas 295 a 378.
[4] Poder-se-á ver com proveito o livro indicado na nota anterior, nas páginas de 263 a 293.
[5] Ver livro Sobre notas escolares: distorções e possibilidades, Cortez Editora, São Paulo, 2014,  citado anteriormente.




REFERÊNCIAS


Para aprofundamento das compreensões expostas neste texto, estudar os seguintes fontes:

Cipriano Carlos Luckesi, Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições, Cortez Editora, São Paulo, 22ª edição, 2012

Cipriano Carlos Luckesi, Avaliação da aprendizagem: componente do ato pedagógico, Cortez Editora, São Paulo, 1ª edição, 2011

Cipriano Carlos Luckesi, Sobre notas escolares: distorções e possibilidades, Cortez Editora, São Paulo, 2014

Site http://www.luckesi.com.br

Blog --- luckesi.blospot.com





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