sábado, 17 de fevereiro de 2018

130 - FUNCIONALIDADE DO CONHECIMENTO, ENSINO E AVALIAÇÃO


Cipriano Luckesi
ccluckesi@gmail.com

O ato de conhecer reflexivo é próprio do ser humano. Por essa característica, ele conhece, e, sabe que conhece (reflete = dobra-se sobre si mesmo); fator que lhe permite ter consciência do seu conhecimento, das suas possibilidades e dos seus limites. Nosso conhecimento é funcional e, desse modo, nos permite uma relação eficiente com tudo o que nos cerca.
Depois de obtido, o conhecimento permite nos relacionarmos com tudo aquilo que está a nossa volta, a fim de que possamos administrar a vida de modo eficiente. O conhecimento factual elucida a realidade, o que quer dizer que “traz luz à realidade” (termo originado do latim e-lucere = trazer a luz), isto é, permite compreendê-la e, por isso, agir de modo eficiente com ela. A atividade cognitiva factual busca compreender “o que é” e “como funciona” a realidade.
Vale observar que “a relação eficiente com tudo aquilo que nos cerca” não significa, por si, uma relação ao mesmo tempo ética, significa simplesmente uma relação de eficiência. A relação ética depende de um fator a mais, para além do conhecimento factual da realidade. Ela implica em uma escolha, com base em valores, fator que está comprometido com o fato de que o ser humano, afetiva e eticamente, se relaciona com o mundo pela “não indiferença”, isto é, tomando posição segundo uma escala de valores que varia entre o positivo e o negativo. O modo ético de agir depende da aprendizagem de valores, que são circunstanciais e dependentes das escolhas humanas, assim como das relações entre seres humanos.
Necessitamos dos dois âmbitos de conhecimento a fim de manter uma vida saudável em relação a nós mesmos, aos outros e ao ambiente que nos envolve. Todavia, neste texto, desejo ater-me a questão da funcionalidade do conhecimento, tendo em vista sinalizar a questão do ensino e da avaliação da aprendizagem.
A funcionalidade do conhecimento é constitutiva do ser humano, própria do modelo homo sapiens, ao qual pertencemos há milhões de anos. Adquirimos conhecimentos pela aprendizagem como um recurso que a natureza nos forneceu para administrarmos a vida em todas as nossas relações, desde que somos um “ser de relações”, como definiu o Prof. Paulo Freire. Sem o conhecimento, como compreensão da realidade, agiríamos às escuras, na ignorância ou instintivamente, como acontece com outros seres vivos.
A escola nasceu no contexto da necessidade do ser humano aprender sistematicamente. Espontaneamente, aprendemos na relação direta e imediata com o mundo circundante e suas manifestações. Porém, para além do espontâneo, há uma aprendizagem intencional, desejada, buscada, que ocorre através das heranças dos conhecimentos adquiridos, acumulados e transferidos de geração em geração, ao longo do tempo. No que se refere à aprendizagem, sempre somos herdeiros de nossos ancestrais. Ao lado de aprendermos diretamente com os desafios que o mundo nos impõe, aprendemos indiretamente a partir dos conhecimentos que foram sendo acumulados ao longo do tempo e nos foram, e nos são, transmitidos por variados meios de comunicação, tais como oral, escrito, pictórico, cinematográfico...
Tanto os conhecimentos adquiridos diretamente pela relação com o mundo, como os conhecimentos adquiridos de modo indireto através das leituras, dos meios de comunicação, do ensino..., desde que apropriados por cada um de nós, tem uma funcionalidade em nossas vidas. Eles nos guiam em nossas decisões, condutas e ações. A meu ver, deveriam ser ensinados e aprendidos por essa razão. Todavia, em nossas escolas, nossos estudantes têm sido levados a aprender --- adquirir conhecimentos --- mais pela pressão da autoridade pedagógica que pela sua qualidade funcional.
Quem de nós, quando estudantes, não ouviu frases iguais ou semelhantes às que se seguem? “Preparem-se, estamos próximos das provas!” “Vocês não têm estudado. Verão o que acontecerá com vocês no dia da prova.” “Já preparei ótimas questões para as provas; vocês verão no dia.” “Vocês estão brincado; verão o que acontecerá no dia das provas.” Todos nós, no decurso de nossa escolaridade, ouvimos frases equivalentes a essas. Pior, quantos de nós já repetimos expressões semelhantes diante de nossos estudantes em sala de aula, reproduzindo aquilo que aconteceu conosco?
Nesse contexto de imposição pedagógica, a razão para aprender não está no fato de que a posse do conhecimento tem uma funcionalidade essencial na vida de cada um e de todos nós. Então, didaticamente, que tal, ao invés de ameaçarmos nossos estudantes, convidá-los e orientá-los a aprender em razão do fato de que o conhecimento é a base de nossa ação no cotidiano? Todos nós, afinal, agimos --- de modo eficiente --- no limite de nossos conhecimentos e habilidades. Nossos estudantes também. Então, importa conduzi-los a aprender pela qualidade funcional do conhecimento e não pela ameaça da reprovação como uma forma de castigo.
O ensino da adição ou da subtração, em matemática, como de todos os outros conteúdos cognitivos --- que atravessam a escolaridade da educação infantil à pós-graduação --- têm sua funcionalidade nos procedimentos de compreensão do mundo, assim como no agir junto a esse mesmo mundo. Então, qual a razão para não convidar nossos estudantes a aprender pela beleza da compreensão da vida e do mundo, ao invés de acreditar que é, e será, a ameaça e o medo que farão com que eles aprendam.
Cada um de nós poderá olhar para o passado pessoal de aprendizagens escolares, e, facilmente, constataremos que “fomos obrigados a aprender” muito mais pelo medo da reprovação que pela qualidade funcional do conhecimento que nos guia em nossas ações.
O convite deste texto é para que, em nossas práticas docentes, sejamos parceiros de nossos estudantes, ensinando-os pacientemente, a fim de que compreendam o mundo, assim como construam habilidades pessoais que lhes permitam agir de forma adequada e eficiente.

Os conhecimentos não têm a finalidade de garantir, em primeiro lugar, respostas adequadas nos testes e provas escolares. Eles têm a função de “e-lucidar” a realidade e nos permitir agir de modo eficiente. Essa é a razão pela qual a humanidade inventou a escola como espaço intencional do ensino e da aprendizagem para as novas gerações.
Os testes e as provas existem exclusivamente para subsidiar o educador em sua tarefa pedagógica de “diagnosticar” se seu estudante aprendeu, ou não, aquilo que lhe fora ensinado. Caso se diagnostique que aprendeu, ótimo. Caso se diagnostique que não tenha aprendido, importa ensinar de novo, e de novo, e de novo... até que aprenda, desde que a posse do conhecimento é um guia necessário para a vida eficiente e saudável. Mais --- todos podem aprender tudo o que ensinamos, desde que chegaram ao mundo com recursos para aprender. Parra tanto, importa o uso dos currículos, dos planos de ensino e de metodologias adequadas.
O exercício do ato de ensinar está comprometido com o fato de que o estudante pode e necessita aprender aquilo que se refere ao seu estar no mundo e às possibilidades do seu agir. E, no caso, o ato de avaliar a qualidade da aprendizagem do estudante, por si, nasce comprometido com o fato de que o educador, exclusivamente olhando para o estudante, não terá como ter ciência do que se passa dentro dele em decorrência do ensino; pelo exclusivo recurso da observação passiva, nunca terá ciência se aprendeu, ou não, aquilo que ensinara.
Então, a única forma de saber se um estudante aprendeu aquilo que ensinamos é perguntar-lhe se adquiriu as compreensões e habilidades que propusemos com base no currículo escolar assumido como válido. Importa, pois, que o estudante revele (expresse) aquilo que se passa em sua subjetividade em termos de compreensões e habilidades adquiridas.
Caso sua resposta pessoal seja "de que aprendeu aquilo que lhe fora ensinado", importa que demonstre que aprendeu, seja através de uma descritiva, de um raciocínio lógico, seja através da solução de um problema, seja através de um desempenho qualquer, desde que, frente a nossa incapacidade de penetrar em sua subjetividade, importa que, através de seus atos, revele sua aprendizagem.
A função de praticar atos de "investigação avaliativa" não tem, em primeiro lugar, a função de aprovar ou reprovar um estudante ou atribuir-lhe notas. Tem, sim, a função de subsidiar novas decisões do educador na perspectiva de obter o melhor resultado decorrente de sua ação pedagógica.

A função da avaliação da aprendizagem é revelar se o estudante aprendeu, ou não, aquilo que fora ensinado. Se sim, ótimo; caso, contrário, ensinar de novo até que a aprendizagem se faça. Então, à medida que todos aprenderam com nosso ensino, todos serão aprovados.
Por si, essa compreensão expressa uma lógica simples, porém, a pratica escolar cotidiana tem revelado dificuldades para praticá-la em função da história do exercício pedagógico em nossa sociedade, que assumiu uma característica excludente, marcando inclusive nossas biografias pessoais. Afinal, no de curso de nossa escolaridade, todos fomos marcados por experiências excludentes, que, agora, no lugar de profissionais da educação escolar, repetimos aquilo que ocorreu com cada um de nós, ou seja, fomos castigados, inconscientemente castigamos; fomos reprovados, inconscientemente reprovamos; fomos ameaçados como recurso para a aprendizagem, agimos de forma semelhante, repetindo o que ocorreu conosco.
No lugar de professor, professora, importa saudavelmente olhar para o nosso passado de estudantes e aprender a nos conduzir de modo mais saudável na relação com nossos estudantes, integrando e ultrapassando aquilo que ocorreu com cada um de nós. Podemos aprender a agir de modo diverso, a partir das dores que vivenciamos.

Os estudantes vieram para a escola para aprender e nós --- professores e adultos da relação pedagógica --- vamos para a escola para ensiná-los até que aprendam aquilo que é necessário que aprendam, segundo o currículo que assumimos para orientar nossa ação pedagógica.
Nossa meta como educadores escolares é: liderar nossos estudantes para que aprendam aquilo que ensinamos, devido ao fato de que os conhecimentos adquiridos têm um sentido funcional em suas vidas, como na vida de todos, à medida que subsidiam um agir eficiente e saudável.
Os testes? Esses servirão somente para que os estudantes nos revelem se aprenderam, ou não, aquilo que ensinamos. Não tem a função de submetê-los a ameaças, obrigando-os a aprender. Nossa liderança criativa --- se dessa forma for utilizada --- deverá ser suficiente para estimulá-los e conduzi-los a aprender, com alegria e prazer. Se nossos olhos brilharem enquanto ensinamos, os olhos dos nossos estudantes brilharão frente a beleza e a alegria de aprender.
Será sempre prazeroso ter, através do conhecimento, o domínio sobre aquilo que nos cerca, à medida que esse domínio nos possibilita a compreensão do mundo que nos envolve, assim como nos subsidia (oferece suporte) em nossas decisões na busca da eficiência em nossa ação; afinal, o sucesso no agir.




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