domingo, 1 de fevereiro de 2015

87 - O significado do padrão de qualidade na avaliação da aprendizagem escolar. Também na Educação Infantil?


Cipriano Luckesi


Para compreender essa temática, importa compreender o que é avaliar, o que é avaliar a aprendizagem, o significado do currículo escolar como guia para o ensino e para a avaliação da aprendizagem; e, por último, uma ponderação sobre a possibilidade de uma prática da avaliação da aprendizagem na escola.

01.   Que é o ato de avaliar?
O ato de avaliar é o ato de investigar a qualidade da realidade pelo processo de “atribuir valor a”...
O termo “avaliação” tem sua fonte etimológica latina pela junção do prefixo “a” ao verbo “valere”, que dá “avalere” e significa a “atribuir valor a” alguma coisa, pessoa, ação...
Qualidade não existe por si, ela é adjetiva e, por isso mesmo, à semelhança do adjetivo em gramática, ela adere a alguma realidade.
Na gramática, o adjetivo (que expressa a qualidade) adere ao substantivo (que expressa a realidade); então, o adjetivo (atribuição de qualidade) só pode existir como adjetivo, se efetivamente aderido ao substantivo (exemplo, “casa bonita”). Epistemologicamente, se diz que a qualidade “existe em outro”; ela existe aderida (atribuída) ao ser (aquilo que é), com base em algum parâmetro.
Quando, na expressão linguística, utilizamos um adjetivo sob a forma de substantivo --- por exemplo, "beleza" ---, esse substantivo é chamado de “abstrato”, devido ao fato de que ele não tem realidade, não tem substância; é uma “abstração”. No caso, é um adjetivo substantivado. O que existe na realidade é um “objeto ou um ser belo” e não a “beleza”. Por exemplo, “mulher bela”, “comida saborosa”. “Mulher” existe (é real), sendo bela ou não; “comida” existe (é real), sendo saborosa ou não. Já as qualidades --- “bela” e “saborosa”, ou outras quaisquer qualidades --- não existem por si; são atribuídas à realidade, tendo por base um parâmetro dessas qiualidades.
A atribuição de uma qualidade a algum objeto, pessoa, ação... decorre de uma comparação da realidade (descrita pelo substantivo) com um padrão de qualidade (critério de qualidade).
Por exemplo, quando dizemos “moradia humana” significa que podem existir vários tipos de moradias; contudo, “esta moradia”, à qual estou me referindo, é “humana”, pois que estou (01) comparando a realidade física dessa determinada moradia com (02) um padrão (critério) do que considero “humana”. Então, à medida que a “realidade física da moradia”, que tenho à minha frente, “preenche os requisitos do critério do que considero humano”, essa moradia é considerada, por mim, como qualitativamente “humana”.
Em síntese, o ato de avaliar se assenta sobre dois elementos: (01) descritiva da realidade através de suas características; (02) atribuição de qualidade a essa realidade descrita. A expressão “mulher bela” tem a ver com (01) a existência de “uma mulher”, descrita por suas características, que, (02) comparada com um critério de beleza (padrão de beleza), nos permite atribuir-lhe a qualidade de “bela”.
Dessa abordagem epistemológica da avaliação se desprende que “o ato de avaliar é um ato de investigar a qualidade da realidade, (01) através de uma descritiva da própria realidade em avaliação, por meio de suas características, e, em seguida, (02) revelando a qualidade dessa realidade pela sua comparação com um determinado critério de avaliação”.
Desse modo, o ato de avaliar tem seu fundamento na realidade daquilo que se avalia; o ato de avaliar exige, pois, uma descritiva da realidade, como sua base. Caso contrário, a avaliação será simplesmente a expressão de uma opinião emocional. Vamos imaginar um médico que não buscasse a descritiva do quadro físico de saúde de seu cliente e, exclusivamente na base de sua opinião, lhe atribuísse uma configuração do seu quadro de saúde. Seria uma “opinião” e não um diagnóstico. Para ocorrer o ato de avaliar, também não basta só descritiva da realidade, há necessidade, ainda, de um parâmetro de qualidade aceitável como positiva dessa realidade, a fim de que, por comparação, possa aquilatar a realidade que tem diante de si.
A consequência do ato de avaliar é dar base para o próximo passo da nossa ação, tendo em vista obter o melhor resultado.
Todos nós no dia a dia --- e nosso cérebro também atua por si mesmo dessa maneira --- agimos com base numa investigação da qualidade da realidade, possibilitando nossa escolha, por mais rápida que seja.
E, a partir da identificação --- por mais rápida que seja --- da qualidade da realidade, tomamos a decisão de continuar no mesmo caminho que estamos seguindo ou seguir outro caminho; nas decisões tomadas em átimos de tempo, nosso sistema nervoso faz isso por nós (quanto ao modo de agir do sistema nervoso, há necessidade de apropriarmo-nos de outros estudos, tendo em vista compreender que nossos modos habituais de agir podem nos enganar quanto à melhor decisão a ser tomada, à media que, por vezes, nossas reações são simplesmente intempestivas)

02.   Avaliação da aprendizagem
Tomando por base a compreensão epistemológica do ato de avaliar, acima exposto, o “ato de avaliar a aprendizagem dos educandos”, na prática escolar, implica: (01) em descrever o desempenho factual do educando num determinado conteúdo (informação, procedimento, conduta prática, conduta afetiva...) e, a seguir, (02) comparar essa conduta apresentada pelo educando com um “padrão (critério) de qualidade”, previamente estabelecido, fato que permitirá afirmar se essa aprendizagem “já é satisfatória” ou “ainda não”. O resultado do ato de avaliar --- identificação da qualidade da realidade --- (03) nos possibilita novas decisões no caminho de nossa ação, tendo em vista chegar aos resultados que desejamos.
Isso significa que o ato de avaliar a aprendizagem dos educandos tem a função de “investigar a qualidade da sua aprendizagem (aquilo que foi aprendido e como foi aprendido)”, oferecendo suporte para novas decisões de nossa parte, como gestores da atividade de ensinar.
Vale à pena, então, sinalizar que não há como “avaliar a aprendizagem dos educandos” sem que se tenha uma efetiva e adequada “descrição” do seu desempenho no conteúdo considerado (informação, procedimento, conduta), assim como sem que se tenha um “critério”, previamente estabelecido, que permita, por comparação, expressar a sua qualidade. Sem esse algoritmo de procedimento metodológico, certamente, chegaremos a “opiniões” sobre as condutas dos educandos, fator que não nos possibilitará decisões consistentes tendo em vista subsidiar a conquista dos melhores resultados decorrentes de nossa ação.

03.   Currículo escolar como orientação para o ensino e como critério para a avaliação
O currículo escolar traz a configuração do que se vai ensinar, e, dessa forma, orienta e determina a ação docente, ou, de forma mais simples e direta, configura e orienta a ação docente. Ao mesmo tempo em que configura o que e como ensinar, configura também o que o educando deve aprender, ou seja, o critério de qualidade a ser levando em conta no ato de avaliar.
O currículo define o que se vai ensinar, assim como qual qualidade da aprendizagem será aceitável como desempenho do educando, em sua aprendizagem.
Então, a título de um exemplo ilustrativo. Do ponto de vista do ensino, nas séries escolares iniciais, o currículo afirma que será ensinada a “operação de adição em matemática”, ou seja, o educando será ensinado sobre os seguintes conteúdos: (01) raciocínio aditivo, (02) operação aditiva (fórmula), (03) propriedades da adição, (04) solução de problemas simples e (05) solução de problemas complexos (segundo o nível de desenvolvimento dos educandos que estão sendo ensinados).
 No ato de avaliar, que acompanhará eu/ou será subsequente ao ato de ensinar, buscar-se-á revelar se o educando adquiriu domínio sobre a (01) “raciocínio aditivo”, (02) “operação aditiva (fórmula)”, (03) as “propriedades da adição”, (04) solucionar problemas simples de adição, (05) solucionar problemas complexos de dição, compatíveis com seu nível de desenvolvimento. Ou seja, no ato de avaliar, buscar-se-á saber com que qualidade o educando atingiu a aprendizagem desses conteúdos. E, a consequência disso é, se não atingiu a qualidade desejada, o que se vai fazer para que atinja essa qualidade.

04.   Ponderações sobre a questão da necessidade de um padrão de qualidade na prática da avaliação da aprendizagem escolar em geral, como também na Educação Infantil
É possível praticar a avaliação da aprendizagem na escola sem que se tenha um padrão de qualidade a ser levado em consideração para atribuir qualidade ao desempenho do educando?
 Certamente que não, a menos que a atividade escolar não seja orientada por um currículo; e, mesmo quando se supõe não ter um padrão ou critério de qualidade tendo em vista aquilatar os resultados da ação pedagógica, ainda se tem um padrão de qualidade, como veremos.
O termo currículo vem da expressão latina curricula, que se referia às guias (uma guia de cada lado) que determinavam por onde deveriam passar as bigas (carros de corrida) nas disputas nos estádios romanos. Os curricula (guias) davam direção por onde deveriam seguir os carros de corrida. Nossos currículos escolares dão a direção (guia) por onde deve seguir o ensino e, consequentemente, o que se deve levar em conta para saber se o educando aprendeu o que foi ensinado.
Se o currículo está posto para orientar o ensino e, consequentemente, a aprendizagem dos educandos, como também a avaliação do seu desempenho, o educador terá como sua tarefa conduzir os educandos à aprendizagem dos conteúdos estabelecidos (desde que ele é o gestor do ensino) e, para ter ciência se os educandos aprenderam o que ensinou, terá que praticar a avaliação tendo como critério de qualidade as configurações do currículo estabelecido.
Praticar a avaliação, sem que se tenha um padrão de qualidade, configurado pelo currículo conscientemente formulado, poderá ser uma investigação aberta sobre as condutas dos educandos, da forma como elas ocorrem, tendo por base a ausência de um currículo explicitamente definido.
Nesse caso, poder-se-ia dizer que o “currículo” dessa escola é “a ausência de currículo”, pois que será essa “ausência” que guiará tanto as atividades pedagógicas do ensino quanto as atividades da avaliação.
No caso, a avaliação, propriamente, não será uma investigação da qualidade da aprendizagem dos educandos, mas sim uma investigação de seu modo de se conduzir espontaneamente (isto é, sem um guia para conduzir a determinadas condutas desejadas)
Poderá existir uma escola sem currículo? Uma escola que, como sua filosofia, assume a abolição de um currículo que guie as condutas dos docentes e dos discentes, assume como seu currículo “a postura de não ter currículo”, ou seja, educadores atuarão livremente ao seu sabor, ou ao sabor do que emergir entre os educandos, e, então, os educandos serão avaliados em suas condutas sem um parâmetro (ou critério) preestabelecido.
No caso, levar-se-á em consideração o que estiver acontecendo e não o que se deseja que aconteça. Mais do que uma prática avaliativa, que tem por base, um parâmetro de qualidade, ocorrerá somente uma descritiva das condutas emergentes.
No caso da Educação Infantil, por exemplo, de zero a dois anos (mas, poderia ser em qualquer outra faixa etária; estamos tomando essa faixa etária, por ser a mais tenra), poderá parecer que não existe a possibilidade de se ter um currículo configurado, devido a tenra idade; contudo, os profissionais que atuam nesse nível de atendimento de crianças deverão conhecer e ter presente os parâmetros do que, através de estudos científicos, se denomina de “desenvolvimento normal de crianças nessa idade”, tanto para (01) dar forma aos cuidados que necessitam de realizar com essas crianças, como (02) para observar as expressões de seu modo de ser e agir, tendo em vista, se necessário, novos e mais específicos cuidados.

Em síntese, no ato de avaliar, não há possibilidade de não se ter um critério ou padrão de qualidade previamente definido, seja ele plenamente consciente, medianamente consciente ou até inconsciente, como ocorre no feeling (orientação adequada de uma conduta) ou até mesmo no senso comum (orientação cotidiana de uma ação, sem um senso crítico específico).

O padrão de qualidade é um componente, epistemologicamente, constitutivo do ato de avaliar





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