terça-feira, 9 de setembro de 2014

10 - Ainda afetividade, cognição e psicomotricidade

Publicado anteriormente no Blog Terra, em 20/8/2007


Recentemente, uma orientanda minha de Mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, trouxe ao público sua Dissertação, como requisito final para a obtenção do título acadêmico a que fez jus.

Entre as suas leituras, citou o texto que se segue, sentindo-se tocada por ele. Eu também, quando o li, senti-me profundamente tocado por ele. Acredito que quem lê esse depoimento se sente tocado por ele e vale a pena que assim o seja. Todavia, penso que vale à pena também sinalizar uma armadilha onde podemos cair: que a aprendizagem e o desenvolvimento da cognicição devem ser banidos da educação.

Primeiro, vejamos o depoimento e, a seguir, estarei tecendo alguns comentários sobre o que estou tentando sinalizar a partir de sua leitura.

“EU ENSINEI A TODOS ELES. Lecionei no ginásio durante dez anos. No decorrer desse tempo, dei tarefas a, entre outros, um assassino, um evangelista, um pugilista e um imbecil.

O assassino era um menino tranqüilo que se sentava no banco da frente e me olhava com seus olhos azuis-claros; o evangelista era o menino mais popular da escola, liderava as brincadeiras dos jovens; o pugilista ficava perto da janela e, de vez em quando, soltava uma risada rouca que espantava até os gerânios; o ladrão era um jovem alegre com uma canção nos lábios; e o imbecil um animalzinho de olhos mansos, que procurava as sombras.

O assassino espera a morte na penitenciária do Estado; o evangelista, há um ano, jaz sepultado no cemitério da aldeia; o ladrão, se ficar na ponta dos pés, pode ver minha casa da janela da cadeia municipal; e o pequeno imbecil, de olhos mansos de outrora, bate a cabeça contra a parede acolchoada do asilo estadual.

Todos esses alunos outrora se sentaram em minha sala, e me olharam gravemente por cima de mesas marrons. Eu devo ter sido muito útil, para esses alunos: ensinei-lhes o plano rítmico do soneto elisabetano, e como diagramar uma sentença complexa” .

De fato, o depoimento é comovente e nos toca profundamente pelo lado afetivo do cuidado que deveríamos ter com os nossos educandos, como sujeitos e como seres humanos em crescimento. O depoimento fala por si mesmo e retira sua força da sinceridade e consternação do seu autor; nos toca, devido, nem sempre ou quase nunca, estarmos atentos aos fatores psico-afetivos da prática educativa, seja ela escolar, familiar, religiosa…

Então, o autor nos convida, pela força instantânea de seu depoimento a olharmos para nossas práticas educativas, sobre o seu significado, sobre no que investimos, para onde vamos, qual direção seguimos, os resultados de nossos atos educativos.

Ao ler o texto, pessoalmente, levei um “um soco no estômago”, como dizemos popularmente, ou “um aperto no plexo”, como se diz mais sofisticadamente. Todavia, após algumas leituras desse depoimento, passei a observar que o autor, ao qualificar o lado afetivo-emocional da educação, profundamente necessário, ironiza e, de certa forma, desqualifica o lado cognitivo, o que, a meu ver, não se manifesta como uma boa coisa.

No final desse candente depoimento, ele diz: “Todos esses alunos outrora se sentaram em minha sala, e me olharam gravemente por cima de mesas marrons. Eu devo ter sido muito útil, para esses alunos: ensinei-lhes o plano rítmico do soneto elisabetano, e como diagramar uma sentença complexa”. Então pareceria que a causa dos resultados desastrosos citados decorreriam de ensinar-lhes o ritmo do soneto elisabetano ou a diagramação de uma sentença complexa, aspectos cognitivos da prática educativa, o que poderia nos levar, de imediato, a crer que, então, não vale a pena investirmos nessa dimensão da educação do ser humano.

Contudo, na prática educativa, importa estarmos atentos a todas as facetas do nosso educando: a afetivo, ao cognitivo, a psicomotor. Óbvio: o que o autor desse depoimento quis foi nos chocar com a força emocional do que expressa, fazendo-nos chegar ao outro extremo da ação pedagógica; possivelmente, para que, então, cheguemos ao equilíbrio. Mas, se não tomarmos cuidado, podemos nos fixar nesse novo extremo e, então, a cognição, em nossa prática educativa, será descuidada. Se isso ocorrer, no futuro, teremos que ter um novo depoimento, tão chocante quanto este, valorizando o lado cognitivo de nossos educandos, devido o afeto ter tomado todo o espaço da prática educativa, como o cognitivo o fez até agora. Seria trocar um extremo por outro.

Afinal, “nem tanto ao mar nem tanto à terra”. Necessitamos, como educadores e educadoras, de estarmos atentos tanto à afetividade quanto à cognição, assim como quanto à psicomotricidade de nossos educandos. Nenhuma faceta é mais importante do que a outra. Todas são fundamentais, porque constituem o ser humano.

David Boadella, no seu livro Correntes da Vida, diz que nós somos, ao mesmo tempo, sentimento, movimento e pensamento, qualidades ou facetas constitutivas de cada um de nós, que se vinculam às camadas embriológicas que serviram de fonte para a constituição do nosso corpo — respectivamente, endoderma (vísceras), mesoderma (esqueleto e músculos) e ectoderma (sistema nervoso) . Nenhuma dessas qualidades pode ser descuidada, sob pena de estarmos descuidando do ser humano, com o qual trabalhamos, como nosso educando. O equilíbrio entre sentir, pensar e agir é fundamental para estarmos na vida e com os outros da melhor forma possível. Sentir, pensar e agir em equilíbrio tem a ver com a conduta do ser humano na vida, com a conduta ética, que tem sua base no agir com adequação na relação com o outro, tendo por suporte nosso sentir e nosso pensar, ao mesmo tempo.

Ótimo que fiquemos impactados com a força do depoimento acima exposto, para que acordemos do sono letárgico da educação tradicional, que teve seu foco no ensino e na aprendizagem cognitivos, mas importa ir um pouco além, tendo em vista não nos dirigirmos, novamente, para uma outra exclusiva via educativa, deixando de estarmos atentos a outras facetas do ser humano, profundamente necessárias para que ele seja um ser integral, onde afetividade, psicomotricidade e cognição formem e se expressem como um todo.

Os pilares da educação para o século XXI, sistematizados no Relatório, da Unesco, para a educação mundial são: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. Importa que esses objetivos sejam praticados como um todo no cotidiano educativo. Nenhum deles é menor ou maior que outro, porém o aprender a ser engloba todos os outros. É assim que se posiciona o próprio relatório. Esse objetivo sustenta totalmente os outros três, que nada mais são do que explicitação deste. Não há como ser, desprezando um ou outro dos objetivos propostos: o aprender a conhecer, o aprender a fazer ou o aprender a viver juntos. Eles expressam as facetas do ser humano e assim devem ser cuidados, no seu conjunto.

Está posto o desafio para todos nós. Que o depoimento acima nos dê um “soco no estômago” para que acordemos de nosso sono letárgico, estando centrados somente na educação cognitiva, mas que também não nos aprisione em outro extremo — somente a educação afetivo-emocional, porém, sim, que nos conduza a olhar para o ser humano como multifacetado, que necessita de todas as suas facetas cuidadas e desenvolvidas, para que possa Ser.

Temos uma larga experiência de educar cognitivamente, estamos necessitando de aprender a integrar todas as facetas do ser humano na prática educativa. Como? Por enquanto, importa, ao menos, alertar para essa necessidade. Novos passos de entendimento e de práticas serão necessários para que, vagarosamente, vamos transitando de uma educação tradicional, autoritária e impositiva para uma educação, que é construção que vem de dentro de cada educando em sua relação com o mundo fora de si, com pessoas assim como com o meio natural e social. Afinal, o termo educação provém do latim educere, que significa “conduzir de dentro para fora”.

Escrevo este texto, convidando a todos os educadores e educadoras para essa tarefa: hercúlea de integrar em nossa prática educativa cotidiana sentir, pensar e agir, como um todo integrado e harmônico.

Cipriano Luckesi





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