Publicado anteriormente no Blog Terra, em 20/8/2007
Recentemente, uma orientanda minha de Mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, trouxe ao público sua Dissertação, como requisito final para a obtenção do título acadêmico a que fez jus.
Entre as suas leituras, citou o texto que se segue, sentindo-se tocada por ele. Eu também, quando o li, senti-me profundamente tocado por ele. Acredito que quem lê esse depoimento se sente tocado por ele e vale a pena que assim o seja. Todavia, penso que vale à pena também sinalizar uma armadilha onde podemos cair: que a aprendizagem e o desenvolvimento da cognicição devem ser banidos da educação.
Primeiro, vejamos o depoimento e, a
seguir, estarei tecendo alguns comentários sobre o que estou tentando sinalizar
a partir de sua leitura.
“EU ENSINEI A TODOS ELES. Lecionei no
ginásio durante dez anos. No decorrer desse tempo, dei tarefas a, entre outros,
um assassino, um evangelista, um pugilista e um imbecil.
O assassino era um menino tranqüilo que
se sentava no banco da frente e me olhava com seus olhos azuis-claros; o
evangelista era o menino mais popular da escola, liderava as brincadeiras dos
jovens; o pugilista ficava perto da janela e, de vez em quando, soltava uma
risada rouca que espantava até os gerânios; o ladrão era um jovem alegre com
uma canção nos lábios; e o imbecil um animalzinho de olhos mansos, que
procurava as sombras.
O assassino espera a morte na
penitenciária do Estado; o evangelista, há um ano, jaz sepultado no cemitério
da aldeia; o ladrão, se ficar na ponta dos pés, pode ver minha casa da janela
da cadeia municipal; e o pequeno imbecil, de olhos mansos de outrora, bate a
cabeça contra a parede acolchoada do asilo estadual.
Todos esses alunos outrora se sentaram
em minha sala, e me olharam gravemente por cima de mesas marrons. Eu devo ter
sido muito útil, para esses alunos: ensinei-lhes o plano rítmico do soneto
elisabetano, e como diagramar uma sentença complexa” .
De fato, o depoimento é comovente e nos
toca profundamente pelo lado afetivo do cuidado que deveríamos ter com os
nossos educandos, como sujeitos e como seres humanos em crescimento. O
depoimento fala por si mesmo e retira sua força da sinceridade e consternação
do seu autor; nos toca, devido, nem sempre ou quase nunca, estarmos atentos aos
fatores psico-afetivos da prática educativa, seja ela escolar, familiar,
religiosa…
Então, o autor nos convida, pela força
instantânea de seu depoimento a olharmos para nossas práticas educativas, sobre
o seu significado, sobre no que investimos, para onde vamos, qual direção
seguimos, os resultados de nossos atos educativos.
Ao ler o texto, pessoalmente, levei um
“um soco no estômago”, como dizemos popularmente, ou “um aperto no plexo”, como
se diz mais sofisticadamente. Todavia, após algumas leituras desse depoimento,
passei a observar que o autor, ao qualificar o lado afetivo-emocional da
educação, profundamente necessário, ironiza e, de certa forma, desqualifica o
lado cognitivo, o que, a meu ver, não se manifesta como uma boa coisa.
No final desse candente depoimento, ele
diz: “Todos esses alunos outrora se sentaram em minha sala, e me olharam
gravemente por cima de mesas marrons. Eu devo ter sido muito útil, para esses
alunos: ensinei-lhes o plano rítmico do soneto elisabetano, e como diagramar uma
sentença complexa”. Então pareceria que a causa dos resultados desastrosos
citados decorreriam de ensinar-lhes o ritmo do soneto elisabetano ou a
diagramação de uma sentença complexa, aspectos cognitivos da prática educativa,
o que poderia nos levar, de imediato, a crer que, então, não vale a pena
investirmos nessa dimensão da educação do ser humano.
Contudo, na prática educativa, importa
estarmos atentos a todas as facetas do nosso educando: a afetivo, ao cognitivo,
a psicomotor. Óbvio: o que o autor desse depoimento quis foi nos chocar com a
força emocional do que expressa, fazendo-nos chegar ao outro extremo da ação
pedagógica; possivelmente, para que, então, cheguemos ao equilíbrio. Mas, se
não tomarmos cuidado, podemos nos fixar nesse novo extremo e, então, a
cognição, em nossa prática educativa, será descuidada. Se isso ocorrer, no
futuro, teremos que ter um novo depoimento, tão chocante quanto este,
valorizando o lado cognitivo de nossos educandos, devido o afeto ter tomado
todo o espaço da prática educativa, como o cognitivo o fez até agora. Seria
trocar um extremo por outro.
Afinal, “nem tanto ao mar nem tanto à
terra”. Necessitamos, como educadores e educadoras, de estarmos atentos tanto à
afetividade quanto à cognição, assim como quanto à psicomotricidade de nossos
educandos. Nenhuma faceta é mais importante do que a outra. Todas são
fundamentais, porque constituem o ser humano.
David Boadella, no seu livro Correntes
da Vida, diz que nós somos, ao mesmo tempo, sentimento, movimento e pensamento,
qualidades ou facetas constitutivas de cada um de nós, que se vinculam às
camadas embriológicas que serviram de fonte para a constituição do nosso corpo
— respectivamente, endoderma (vísceras), mesoderma (esqueleto e músculos) e
ectoderma (sistema nervoso) . Nenhuma dessas qualidades pode ser descuidada,
sob pena de estarmos descuidando do ser humano, com o qual trabalhamos, como
nosso educando. O equilíbrio entre sentir, pensar e agir é fundamental para
estarmos na vida e com os outros da melhor forma possível. Sentir, pensar e
agir em equilíbrio tem a ver com a conduta do ser humano na vida, com a conduta
ética, que tem sua base no agir com adequação na relação com o outro, tendo por
suporte nosso sentir e nosso pensar, ao mesmo tempo.
Ótimo que fiquemos impactados com a
força do depoimento acima exposto, para que acordemos do sono letárgico da
educação tradicional, que teve seu foco no ensino e na aprendizagem cognitivos,
mas importa ir um pouco além, tendo em vista não nos dirigirmos, novamente,
para uma outra exclusiva via educativa, deixando de estarmos atentos a outras
facetas do ser humano, profundamente necessárias para que ele seja um ser
integral, onde afetividade, psicomotricidade e cognição formem e se expressem
como um todo.
Os pilares da educação para o século
XXI, sistematizados no Relatório, da Unesco, para a educação mundial são:
aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a
ser. Importa que esses objetivos sejam praticados como um todo no cotidiano
educativo. Nenhum deles é menor ou maior que outro, porém o aprender a ser
engloba todos os outros. É assim que se posiciona o próprio relatório. Esse
objetivo sustenta totalmente os outros três, que nada mais são do que
explicitação deste. Não há como ser, desprezando um ou outro dos objetivos
propostos: o aprender a conhecer, o aprender a fazer ou o aprender a viver
juntos. Eles expressam as facetas do ser humano e assim devem ser cuidados, no
seu conjunto.
Está posto o desafio para todos nós.
Que o depoimento acima nos dê um “soco no estômago” para que acordemos de nosso
sono letárgico, estando centrados somente na educação cognitiva, mas que também
não nos aprisione em outro extremo — somente a educação afetivo-emocional,
porém, sim, que nos conduza a olhar para o ser humano como multifacetado, que
necessita de todas as suas facetas cuidadas e desenvolvidas, para que possa
Ser.
Temos uma larga experiência de educar
cognitivamente, estamos necessitando de aprender a integrar todas as facetas do
ser humano na prática educativa. Como? Por enquanto, importa, ao menos, alertar
para essa necessidade. Novos passos de entendimento e de práticas serão
necessários para que, vagarosamente, vamos transitando de uma educação
tradicional, autoritária e impositiva para uma educação, que é construção que
vem de dentro de cada educando em sua relação com o mundo fora de si, com
pessoas assim como com o meio natural e social. Afinal, o termo educação provém
do latim educere, que significa “conduzir de dentro para fora”.
Escrevo este texto, convidando a todos
os educadores e educadoras para essa tarefa: hercúlea de integrar em nossa
prática educativa cotidiana sentir, pensar e agir, como um todo integrado e
harmônico.
Cipriano Luckesi
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