terça-feira, 9 de setembro de 2014

07 - Resistências ao ato de avaliar

Publicado anteriormente no Blog Terra, em 4/8/07


John Hunter em seu livro Princípios de Liderança segundo o Monge e o Executivo, define insanidade como o ato de desejar resultados novos, sem mudar hábitos antigos. De fato, é assim. Para termos resultados novos no processo de ensino-aprendizagem em nossas escolas são necessários hábitos novos e estes, por sua vez, exigem novas aprendizagens, como também novas condições para exercitá-las.

No que se refere à avaliação da aprendizagem, nós educadores temos estado aprisionados a padrões de compreensão e de conduta que vem de séculos passados; minimamente, do início da modernidade para cá.

Michel Foucault, em seu livro Vigiar e punir, nos lembra que, com o final dos mecanismos inquisitoriais, públicos e teatrais, do final da Idade Média, passamos, na emergência da modernidade, para os mecanismos de disciplinamento através dos micros-poderes. Esses são recursos silenciosos de controle de pessoas e de grupos humanos, que, integrados, constituem a sociedade como um todo.

Os exames escolares fazem parte desses recursos. Eles, da forma como existem hoje, desde que foram sistematizados no século XVI, carregam uma carga de ameaça e castigo sobre os educandos, cujo objetivo é pressioná-los, para que disciplinadamente estudem, aprendam e assumam condutas, muitas vezes, além de externas a eles mesmos, também aversivas. O disciplinamento não a disciplina (essa tem dimensão muito diversa do disciplinamento) cria o controle, por vezes aversivo e imposto, sobre os educandos. A permanência desse modo de uso dos exames escolares criou, ao longo dos cinco séculos da modernidade, um padrão de conduta arraigado nos educadores.

Cinco séculos constituem um período de tempo bastante longo para que desejemos mudá-lo rapidamente, como em um passe de mágica. A história da educação moderna nos aprisiona no modelo examinativo no que se refere ao acompanhamento da aprendizagem dos educandos na escola.
Para mudar isso, é preciso remover o peso desse modo de compreender e agir, que se apresenta como um “campo mórfico” (na linguagem de Rupert Scheldrak) blindado e resistente a qualquer mudança. Assim sendo, não faz muito sentido condenar educadores que, hoje, ainda, não conseguem transitar do ato de examinar para o ato de avaliar na escola. Importa agir junto de eles para que, vagarosamente, possam produzir uma “desconstrução” interna desse modo de agir, reconstruindo um novo; ou, segundo uma linguagem do materialismo dialético, importa agir junto deles para que possam superar o passado, incorporando-o numa nova visão e num novo modo de ser.

Não se pode negar o passado, o que se pode fazer é superá-lo, incorporando o que ele ofereceu para a história. A configuração histórica do modo de agir com os exames tornou-se resistente a mudanças, pois que ela oferece um modo confortável de ser, garantindo ao educador poder de controle sobre os educandos. Não é fácil abrir mão disso. Contudo, para atuar com avaliação, importa superar a prática dos exames escolares, incorporando-a como nosso passado, assim como usufruindo dela o que ela ainda, por ventura, possa nos ensinar para a perspectiva construtiva, que temos hoje. Como um todo, os exames escolares, hoje, não nos ajudam a produzir resultados escolares bem sucedidos; todavia, por exemplo, aprendemos com eles a necessidades de acompanhar nossos educandos; e essa é uma noção profundamente, importante para quem deseja sucesso; o que não serve mais, para a escola, é o modo de satisfazer essa necessidade.

Por traz dessa longa vivência histórica dos exames escolares, que está arraigada em nossas condutas e nos aprisiona, há o segundo fator que dá base à resistência à mudança: o modelo de sociedade, vigente na modernidade, que é excludente.

O modelo social burguês capitalista nos compromete a todos. Os exames são excludentes e, por isso, compatíveis com o modelo de sociedade dentro do qual existe e se realiza. Há, pois, uma compatibilidade entre modelo social e exames escolares, fato que reforça o significado e a permanência destes últimos e, ao mesmo tempo, reforça o significado e a permanência do modelo social. A avaliação da aprendizagem é democrática, pois que, sendo inclusiva, acolhe a todos, o que se opõe ao modelo social hierarquizado e excludente da sociedade burguesa, daí ser difícil praticá-la. Agir examinativamente reforça tanto o modelo dos exames quanto o modelo social. Daí o modelo social dentro do qual se processa os atos examinativos ser um fator determinante na constituição e permanência da resistência ao trânsito do ato de examinar para o ato de avaliar na escola. Agir inclusivamente numa sociedade excludente exige consciência crítica, clara, precisa e desejo político de se confrontar com esse modo de ser, que já não nos satisfaz mais. O ato de usar a avaliação da aprendizagem dentro da escola, hoje, é um ato revolucionário em relação ao modelo social vigente. Significa agir de modo inclusivo dentro de uma sociedade excludente; para tanto há necessidade de comprometimento político… de muito comprometimento político. É mais fácil agir com a direção para a qual leva a maré. Para opor-se a ela, há que se colocar força no remo, muita força!

Existe um terceiro fator que atua fortemente na constituição e manutenção da resistência a esse trânsito, que a experiência biográfica de cada educador. Durante nossa vida escolar pregressa, fomos excessivamente examinados, o que quer dizer “ameaçados com os exames escolares”. Agora, nos tornamos educadores e, então, replicamos junto aos nossos educandos aquilo que aconteceu conosco: “fomos examinados, agora examinamos”. E, repito, não é por má vontade que os educadores agem assim. A frase acima está inscrita em nosso inconsciente, não no nosso consciente.

Somos determinados, pelo modelo social, pela história da educação e por nossas singularidades biográficas. Como aprendemos a obedecer, de modo externo e aversivo, em nossas vidas escolares, repetimos essa prática junto aos nossos educandos. E, importa observar, repetimos automaticamente, portanto, de modo inconsciente. Os traumas e abusos, pelos quais passamos em nossas vidas, fixam-se em nosso inconsciente e, de lá, acionam automaticamente comandos, que externamente regem nossas condutas. Eles nos obrigam a reproduzir automaticamente um modo de ser (os que gostam de cinema poderão assistir o filme Duas Vidas, com Bruce Villes, da Disney, e, então, verão como um trauma age automaticamente na vida de um ser humano).

Assim sendo, educadores que desejam efetivamente atuar pedagogicamente, servindo-se dos recursos da avaliação da aprendizagem, portanto, de um modo diverso do ato de examinar, necessitam de assumir consciência clara de que estão rompendo com o modelo social excludente (a avaliação e inclusiva), com cinco séculos de história de educação (os exames escolares foram sistematizados no século XVI e a avaliação da aprendizagem no século XX), assim como com os próprios fantasmas internos adquiridos ao longo de sua vida pessoal e escolar (os medos e ansiedades que passamos não devem ser argumento suficiente para que também geremos o medo e a ansiedade junto aos nossos educandos).

Para transitar do ato de examinar para o ato de avaliar na escola, necessitamos de proceder a uma metanoia, termo grego que significa conversão. Conversão, aqui, não tem nada a ver com “conversão religiosa”; tem a ver, sim, com ultrapassagem de conceitos e modos de agir que já não mais nos auxiliam em nosso caminhar pela vida e pela atividade profissional. E, aqui volta, a compreensão do que é insanidade, para John Hunter: insano é querer obter resultados novos com hábitos antigos. Para se obter resultados novos, são necessários modos novos de agir.

Avaliar é um ato subsidiário da obtenção de resultados positivos com nossa ação. Ninguém de nós, em sã consciência, age para obter insucesso. Todos desejamos sucesso. Por que, então, na prática educativa, nos contentamos com o fracasso de nossos educandos; ou, pior ainda, ficamos felizes, quando geramos esse fracasso com as provas desnecessariamente complicadas que elaboramos e aplicamos em nossos educandos? A avaliação subsidia, em qualquer atividade humana, o resultado bem sucedido. Ela oferece os recursos para diagnosticar (investigar) uma ação qualquer e, a partir do conhecimento que obtém sobre a qualidade dos resultados dessa ação, intervir nela para que se encaminhe na direção dos resultados desejados. É assim que agimos em nosso cotidiano, porque não agir assim também na prática educativa escolar? Não parece insano, agir sem que se busqu, ao máximo, resultados positivos? Em tudo desejamos o sucesso, mas, no que se refere á escola, acreditamos que “alguém tem que ser reprovado, pois que nem todos podem aprender todas as coisas”. Que crença estranha, não?!!!!

O sucesso, seja lá no que for, exige investimento e o ato de avaliar dá suporte e sustentação para esse modo de agir. Ela subsidiou os grandes cientistas, os inventores das tecnologias, os empreendedores bem sucedidos em todas as áreas humanas, assim como subsidiou todos aqueles que buscaram a superação de uma dificuldade ou impasse na vida. O ato de avaliar é um aliado de todos que desejam produzir resultados satisfatórios com sua ação. Por que não na prática educativa?

Este texto é um convite para olharmos para nós mesmos e para nossas condutas, assim como um convite para decidirmos se desejamos mudar, ou não, nossa conduta de educadores no que se refere à avaliação da aprendizagem. Caso desejemos transitar do ato de examinar para o ato de avaliar, todos os dias, antes de nos dirigirmos para o contato com nossos estudantes na sala de aula, necessitamos de repetir um propósito: “nunca mais atuarei com os atos examinativos em minha sala de aula”. Será necessária a repetição desse propósito por muitas e muitas vezes, até que, vagarosamente, vamos saindo do “templo do exame escolar” e ingressando no “templo da avaliação da aprendizagem escolar”.

Cipriano Luckesi




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