Publicado anteriormente no Blog Terra, em 4/8/07
John Hunter em seu livro Princípios de Liderança segundo o Monge e o Executivo, define insanidade como o ato de desejar resultados novos, sem mudar hábitos antigos. De fato, é assim. Para termos resultados novos no processo de ensino-aprendizagem em nossas escolas são necessários hábitos novos e estes, por sua vez, exigem novas aprendizagens, como também novas condições para exercitá-las.
No que se refere à avaliação da
aprendizagem, nós educadores temos estado aprisionados a padrões de compreensão
e de conduta que vem de séculos passados; minimamente, do início da modernidade
para cá.
Michel Foucault, em seu livro Vigiar e
punir, nos lembra que, com o final dos mecanismos inquisitoriais, públicos e
teatrais, do final da Idade Média, passamos, na emergência da modernidade, para
os mecanismos de disciplinamento através dos micros-poderes. Esses são recursos
silenciosos de controle de pessoas e de grupos humanos, que, integrados,
constituem a sociedade como um todo.
Os exames escolares fazem parte desses
recursos. Eles, da forma como existem hoje, desde que foram sistematizados no
século XVI, carregam uma carga de ameaça e castigo sobre os educandos, cujo
objetivo é pressioná-los, para que disciplinadamente estudem, aprendam e
assumam condutas, muitas vezes, além de externas a eles mesmos, também
aversivas. O disciplinamento não a disciplina (essa tem dimensão muito diversa
do disciplinamento) cria o controle, por vezes aversivo e imposto, sobre os
educandos. A permanência desse modo de uso dos exames escolares criou, ao longo
dos cinco séculos da modernidade, um padrão de conduta arraigado nos
educadores.
Cinco séculos constituem um período de
tempo bastante longo para que desejemos mudá-lo rapidamente, como em um passe
de mágica. A história da educação moderna nos aprisiona no modelo examinativo
no que se refere ao acompanhamento da aprendizagem dos educandos na escola.
Para mudar isso, é preciso remover o
peso desse modo de compreender e agir, que se apresenta como um “campo mórfico”
(na linguagem de Rupert Scheldrak) blindado e resistente a qualquer mudança.
Assim sendo, não faz muito sentido condenar educadores que, hoje, ainda, não
conseguem transitar do ato de examinar para o ato de avaliar na escola. Importa
agir junto de eles para que, vagarosamente, possam produzir uma “desconstrução”
interna desse modo de agir, reconstruindo um novo; ou, segundo uma linguagem do
materialismo dialético, importa agir junto deles para que possam superar o
passado, incorporando-o numa nova visão e num novo modo de ser.
Não se pode negar o passado, o que se pode fazer é superá-lo, incorporando o que ele ofereceu para a história. A configuração histórica do modo de agir com os exames tornou-se resistente a mudanças, pois que ela oferece um modo confortável de ser, garantindo ao educador poder de controle sobre os educandos. Não é fácil abrir mão disso. Contudo, para atuar com avaliação, importa superar a prática dos exames escolares, incorporando-a como nosso passado, assim como usufruindo dela o que ela ainda, por ventura, possa nos ensinar para a perspectiva construtiva, que temos hoje. Como um todo, os exames escolares, hoje, não nos ajudam a produzir resultados escolares bem sucedidos; todavia, por exemplo, aprendemos com eles a necessidades de acompanhar nossos educandos; e essa é uma noção profundamente, importante para quem deseja sucesso; o que não serve mais, para a escola, é o modo de satisfazer essa necessidade.
Por traz dessa longa vivência histórica
dos exames escolares, que está arraigada em nossas condutas e nos aprisiona, há
o segundo fator que dá base à resistência à mudança: o modelo de sociedade,
vigente na modernidade, que é excludente.
O modelo social burguês capitalista nos
compromete a todos. Os exames são excludentes e, por isso, compatíveis com o
modelo de sociedade dentro do qual existe e se realiza. Há, pois, uma
compatibilidade entre modelo social e exames escolares, fato que reforça o
significado e a permanência destes últimos e, ao mesmo tempo, reforça o
significado e a permanência do modelo social. A avaliação da aprendizagem é
democrática, pois que, sendo inclusiva, acolhe a todos, o que se opõe ao modelo
social hierarquizado e excludente da sociedade burguesa, daí ser difícil
praticá-la. Agir examinativamente reforça tanto o modelo dos exames quanto o
modelo social. Daí o modelo social dentro do qual se processa os atos
examinativos ser um fator determinante na constituição e permanência da
resistência ao trânsito do ato de examinar para o ato de avaliar na escola.
Agir inclusivamente numa sociedade excludente exige consciência crítica, clara,
precisa e desejo político de se confrontar com esse modo de ser, que já não nos
satisfaz mais. O ato de usar a avaliação da aprendizagem dentro da escola,
hoje, é um ato revolucionário em relação ao modelo social vigente. Significa
agir de modo inclusivo dentro de uma sociedade excludente; para tanto há
necessidade de comprometimento político… de muito comprometimento político. É
mais fácil agir com a direção para a qual leva a maré. Para opor-se a ela, há
que se colocar força no remo, muita força!
Existe um terceiro fator que atua
fortemente na constituição e manutenção da resistência a esse trânsito, que a
experiência biográfica de cada educador. Durante nossa vida escolar pregressa,
fomos excessivamente examinados, o que quer dizer “ameaçados com os exames
escolares”. Agora, nos tornamos educadores e, então, replicamos junto aos
nossos educandos aquilo que aconteceu conosco: “fomos examinados, agora
examinamos”. E, repito, não é por má vontade que os educadores agem assim. A
frase acima está inscrita em nosso inconsciente, não no nosso consciente.
Somos determinados, pelo modelo social, pela história da educação e por nossas singularidades biográficas. Como aprendemos a obedecer, de modo externo e aversivo, em nossas vidas escolares, repetimos essa prática junto aos nossos educandos. E, importa observar, repetimos automaticamente, portanto, de modo inconsciente. Os traumas e abusos, pelos quais passamos em nossas vidas, fixam-se em nosso inconsciente e, de lá, acionam automaticamente comandos, que externamente regem nossas condutas. Eles nos obrigam a reproduzir automaticamente um modo de ser (os que gostam de cinema poderão assistir o filme Duas Vidas, com Bruce Villes, da Disney, e, então, verão como um trauma age automaticamente na vida de um ser humano).
Assim sendo, educadores que desejam
efetivamente atuar pedagogicamente, servindo-se dos recursos da avaliação da
aprendizagem, portanto, de um modo diverso do ato de examinar, necessitam de
assumir consciência clara de que estão rompendo com o modelo social excludente
(a avaliação e inclusiva), com cinco séculos de história de educação (os exames
escolares foram sistematizados no século XVI e a avaliação da aprendizagem no
século XX), assim como com os próprios fantasmas internos adquiridos ao longo
de sua vida pessoal e escolar (os medos e ansiedades que passamos não devem ser
argumento suficiente para que também geremos o medo e a ansiedade junto aos
nossos educandos).
Para transitar do ato de examinar para
o ato de avaliar na escola, necessitamos de proceder a uma metanoia, termo
grego que significa conversão. Conversão, aqui, não tem nada a ver com
“conversão religiosa”; tem a ver, sim, com ultrapassagem de conceitos e modos
de agir que já não mais nos auxiliam em nosso caminhar pela vida e pela
atividade profissional. E, aqui volta, a compreensão do que é insanidade, para
John Hunter: insano é querer obter resultados novos com hábitos antigos. Para
se obter resultados novos, são necessários modos novos de agir.
Avaliar é um ato subsidiário da
obtenção de resultados positivos com nossa ação. Ninguém de nós, em sã consciência,
age para obter insucesso. Todos desejamos sucesso. Por que, então, na prática
educativa, nos contentamos com o fracasso de nossos educandos; ou, pior ainda,
ficamos felizes, quando geramos esse fracasso com as provas desnecessariamente
complicadas que elaboramos e aplicamos em nossos educandos? A avaliação
subsidia, em qualquer atividade humana, o resultado bem sucedido. Ela oferece
os recursos para diagnosticar (investigar) uma ação qualquer e, a partir do
conhecimento que obtém sobre a qualidade dos resultados dessa ação, intervir
nela para que se encaminhe na direção dos resultados desejados. É assim que
agimos em nosso cotidiano, porque não agir assim também na prática educativa
escolar? Não parece insano, agir sem que se busqu, ao máximo, resultados
positivos? Em tudo desejamos o sucesso, mas, no que se refere á escola,
acreditamos que “alguém tem que ser reprovado, pois que nem todos podem
aprender todas as coisas”. Que crença estranha, não?!!!!
O sucesso, seja lá no que for, exige
investimento e o ato de avaliar dá suporte e sustentação para esse modo de
agir. Ela subsidiou os grandes cientistas, os inventores das tecnologias, os
empreendedores bem sucedidos em todas as áreas humanas, assim como subsidiou
todos aqueles que buscaram a superação de uma dificuldade ou impasse na vida. O
ato de avaliar é um aliado de todos que desejam produzir resultados
satisfatórios com sua ação. Por que não na prática educativa?
Este texto é um convite para olharmos
para nós mesmos e para nossas condutas, assim como um convite para decidirmos
se desejamos mudar, ou não, nossa conduta de educadores no que se refere à
avaliação da aprendizagem. Caso desejemos transitar do ato de examinar para o
ato de avaliar, todos os dias, antes de nos dirigirmos para o contato com
nossos estudantes na sala de aula, necessitamos de repetir um propósito: “nunca
mais atuarei com os atos examinativos em minha sala de aula”. Será necessária a
repetição desse propósito por muitas e muitas vezes, até que, vagarosamente,
vamos saindo do “templo do exame escolar” e ingressando no “templo da avaliação
da aprendizagem escolar”.
Cipriano Luckesi
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