quinta-feira, 2 de outubro de 2014

42 - O fetiche das notas escolares


Texto publicado anteriormente no Terra Blog,Salvador, 06 de julho de 2013
Cipriano Luckesi


Fetiche é alguma coisa que atua sem fundamento na realidade. As notas escolares operam dessa forma, como temos visto nos textos anteriores deste blog e como continuaremos a ver no decorrer do presente texto.

Quando fazia meus estudos de Doutoramento em Educação, no final dos anos 1980, na PUC / São Paulo, tive a oportunidade de estudar, com certa amplitude, o materialismo histórico. Orientaram-me nesses estudos o professor Octavio Ianni, admirável sociólogo brasileiro e estudioso ímpar do materialismo histórico, e o professor Dermeval Saviani, oferecendo as chaves para a leitura das obras de Marx, com um olhar para a educação.

Nesse período, já há muito, dedicava-me ao tema da avaliação da aprendizagem e, então, em um ou outro Seminário de Estudos, sinalizei a possibilidade de abordar a “nota escolar” como um fetiche à semelhança do que Marx fizera com a mercadoria, desdobrando-se para o dinheiro e para o capital.

Tive um colega e amigo que me dizia: “Se você não transformar essa intuição em um texto, eu farei isso”.  Nem eu dei corpo à intuição nem ele cumpriu sua ameaça. Agora, escrevendo alguns textos sobre a questão das notas escolares, que se encontram nos “posts” anteriores deste blog, voltou-me o desejo de dar alguma forma a essa intuição.

Após as abordagens que fiz nos três textos anteriores — “As distorções epistemológicas nas práticas com notas escolares”, “Notas escolares ponderadas”, “Então, como atribuir notas, se essa é a prática em nossas escolas?” — senti desejo de retomar essa possibilidade. As distorções, que apontei antes, só podem existir devido as notas escolares terem sido hipostasiadas, isto é, terem recebido uma realidade que não tem.

Que é o fetiche no seio dos conceitos do materialismo dialético? 

Mercadoria, dinheiro e capital são fenômenos que se dão no seio da sociedade capitalista e que operam descolados da realidade. A base dessa compreensão está no entendimento de Marx sobre valor de uso e valor de troca.

Trarei para dentro deste texto os componentes básicos para compreensão do fetiche, no seio dos conceitos trabalhados por Marx, sem entrar em detalhes que interessam diretamente para a teoria econômica da sociedade capitalista e não necessariamente para o tema que estamos abordando, as notas escolares, ainda que estas estejam inseridas no mesmo contexto social e histórico, a sociedade moderna.

O valor de uso expressa o fato de que determinado bem atende materialmente a uma ou varias necessidades humanas; o valor de troca é aquele que permite as trocas entre produtos, praticadas pelos homens como indivíduos ou como instituições, mas que, no próprio processo de troca, descola-se do valor de uso e atua independente dele, como se tivesse vida própria.

A mercadoria, que é produto da atividade humana e que se destina ao uso para atendimento de necessidades concretas, torna-se independente das relações entre seres humanos e do próprio produto e atua por si mesma; a troca de mercadorias assume vida própria, perdendo sua referência no valor de uso. Quando, diante de um produto qualquer, examinamos o quanto foi investido para sua produção em comparação com o quanto o mercado está cobrando financeiramente por ela, dizemos popularmente — “Não vale quanto pesa” — isto é, está descolado da realidade; ou se, consideramos que o produto vale o que está sendo cobrado, dizemos — “Vale quanto pesa” — querendo indicar que o valor cobrado em dinheiro corresponde à realidade.

Aos comerciantes, no modelo capitalista de produção, não interessa a função material do produto que comercializa (o “vale quanto pesa”); interessa o lucro (o “não vale quanto pesa”).

Para o comércio, tanto faz vender roupa ou alimentos, equipamentos, saúde, educação ou qualquer outra mercadoria (sua base material, valor de uso); importa somente o lucro que ela oferece (valor de troca). A função da mercadoria nas mãos do comércio não tem a ver com sua materialidade e o seu uso para satisfazer uma necessidade humana (certamente poderá e deverá cumprir essa função, mas, no comércio, não se olha, em primeiro lugar, para essa qualidade; a ele interessa o lucro adveniente de sua transação comercial).

A mercadoria, como mercadoria, opera descolada do valor de uso, por isso, se expressa como um fetiche, um “fantasma”, que parece ser real, mas é somente uma imagem que… ilude.

O mesmo ocorre com o dinheiro ou o lucro na sociedade capitalista. O dinheiro — também uma mercadoria — assumiu na história humana o papel de trocador universal de mercadorias. Ao invés de trocar, por exemplo, uma quantidade de alimentos por uma quantidade de metal, o ser humano adotou um trocador universal (o dinheiro), que pudesse ser mais facilmente manipulado e servisse para trocar todos os produtos, que viessem a ser comercializados.

Todavia ocorre que o dinheiro, que nasceu como trocador universal, passou a ter independência e, por si mesmo, passou a gerar lucros através de empréstimos a juros e aplicações monetárias. De trocador universal, o dinheiro passou, ele próprio, a ser uma mercadoria lucrativa, atuando por si mesmo, sem base material.

Por sua vez, o lucro do capital nasce da manipulação do mercado e não propriamente da produção. Ao invés da equação ser — “produção gera lucro”—, ela passou a ser “dinheiro gera dinheiro”. O professor Octavio Ianni costumava dizer que “o capitalismo financeiro é o enlouquecimento do dinheiro”, isto é, geração de riqueza somente com a manipulação do dinheiro, independente da produção material. “Cabeça sem corpo” seria sua expressão.

(Caso o leitor tenha desejo em aprofundar a compreensão sobre a dinâmica da mercadoria, do dinheiro e do capital no materialismo dialético, poderá ver o Volume I da obra  O Capital, de Karl Marx, Partes Primeira e Segunda. O tema do “Fetichismo” encontra-se tratado no final do Capítulo I, da Parte Primeira, que trata da mercadoria; contudo, para uma boa compreensão do tema, importa estudar pelo menos o capítulo todo).

Com essa compreensão o fetiche no materialismo dialético, tomemos a “nota escolar”. Tendo presente as abordagens, que apresentei nos textos anteriores deste blog, expondo suas distorções epistemológicas e práticas na vida escolar e, então, veremos que ela apresenta-se como um fetiche, à medida que opera descolada da realidade do ensino-aprendizagem, à semelhança da mercadoria, do dinheiro e do capital que atuam descolados da realidade em nossa sociedade.

Então, retomemos a compreensão de que a nota, como assumida em nossas escolas, seria a expressão da “qualidade” da aprendizagem; todavia, ao ser atribuída à aprendizagem de um educando, de imediato, ela passa a ser expressão da “quantidade de qualidade” da realidade (ver textos anteriores deste blog), fenômeno que, epistemologicamente, não existe.

A “qualidade” decorre de uma atribuição à realidade, realizada por parte do sujeito, tendo por base suas “propriedades físicas”, isto é, suas propriedades que podem ser perfeitamente descritas; “quantidade”, por outro lado, tem substância em si e por si. A “quantidade” sustenta-se em si mesma; a “qualidade” sustenta-se no outro.

Desse modo, “quantidade de qualidade” não existe à medida que contém em si uma contradictio in terminis, como expressavam os latinos — uma contradição nos próprios termos que desejam expressar a realidade; no caso, uma atribuição (qualidade) tomada como se fosse uma quantidade de realidade (objeto qualificado). Portanto, um fetiche, um fantasma.

Contudo, como um fantasma, a nota opera por si, independente da qualidade que representa, ou seja, as notas escolares permitem proceder operação quantitativas como se fossem quantidades. E, então, hipostasiadas, elas permitem “fazer médias simples”, como também “médias ponderadas”, sem nenhuma referência à realidade à qual deveriam estar vinculadas.

Para compreender essa fenomenologia, trago os exemplos que utilizei nas abordagens anteriores publicadas neste blog e, acima, relembradas.

Em primeiro lugar, o contrabando de conceitos. Qualidade de aprendizagem é “qualidade”, não “quantidade de qualidade”, como passa a ser no momento em que o desempenho do estudante recebe uma nota. Nesse processo, salta indevidamente de “qualidade” para “quantidade”. Esse contrabando é elemento básico para que ela possa sofrer operações matemáticas independentes da prática pedagógica.

Em segundo lugar, a prática da com a “média de notas” expressa o modo como efetivamente se opera com uma “quantidade” sem respaldo na realidade. Um fetiche, pois.

Um exemplo ilustra a situação. Um estudante, sendo ensinado e tendo feito seu aprendizado em operações aritméticas, obtém nota 10,0 (dez) no desempenho da aprendizagem em adição e obtém nota 2,0 (dois) no desempenho da aprendizagem em subtração. As expressões numéricas — 10,0 e 2,0 —, no momento mesmo em que são atribuídas ao estudante, perdem as características de “qualidade” satisfatória e insatisfatória da aprendizagem do estudante e assumem as de “quantidades de qualidades”, por isso, podem manipuladas matematicamente  como se fossem “quantidades”.

Tendo as notas sido atribuídas, opera-se a média quantitativa da seguinte forma: 10,0 + 2,0 = 12/2 = 6,0. Como a operação da média foi realizada entre “quantidades”, aparentemente como entre “qualidades”, pareceria que o “6,0” (seis), como média, expressaria a “qualidade média” do desempenho do educando tanto em adição como em subtração.

O que, de fato, é um engano oportunizado pelo fetiche — algo que não é real, mas se parece com o real. No caso, pareceria que o educando aprendeu suficientemente bem adição e subtração, à medida que está acima do ponto de corte de aprovação, que, em nossa prática, seria o “5,0”, numa escala de 0 (zero) a 10,0 (dez).

Contudo, no caso, o educando aprendeu bem adição, mas nada aprendeu de subtração; no entanto, a média de notas, por si descolada da realidade, expressa que ele aprendeu o suficiente nas duas operações.

Na verdade, epistemologicamente, não existe possibilidade de obter média de qualidades; não há como juntar uma experiência com qualidade satisfatória a outra com qualidade insatisfatória e, então, fazer a média. Uma permanecerá satisfatória e a outra insatisfatória, mesmo que a média de notas, “descolada da realidade”, esteja registrando o contrário. Nesse processo, ocorre um salto indevido de qualidade para quantidade.

E, ainda, vale à pena sinalizar que a média ponderada, da qual tratamos no texto “Notas escolares ponderadas”, anteriormente publicado neste blog, traz o desvio epistemológico e prático semelhante, até mesmo mais acentuado.

Sobre isso, a seguir, retomo o exemplo exposto no texto citado, que registra as notas de dois estudantes relativas aos quatro bimestres de um ano letivo:

Es
1º Bim.
2º Bim.
3º Bim.
4º Bim.
Total
1
  3.1 = 3
  5.2 = 10
7.3 = 21
9.4 = 36
70/10=7.0
2
10.1 = 10
10.2 = 20
8.3 = 24
4.4 = 16
70/10=7.0


Abaixo, a mesma tabela cujos resultados estão registrados por qualidades e não por notas, tomando como referência o critério comumente praticado em nossas escolas paraler “qualidades” a partir de notas, isto é: abaixo da nota 5,0 = insatisfatório; entre 5,0 e menos de 7,0 = médio; entre 7,0 e 8,0 = satisfatório; 9,0 e 10,0 = plenamente satisfatório.

Es
1º Bim.
2º  Bim.
3ºBim.
4º Bim.
Total
1
Insatis.
Médio
Satis.
Plen.satis.
Satis.
2
Plen.satis.
Plen.satis.
Satis.
Insatis.
Satis.


Observando-se a primeira das duas tabelas, percebe-se facilmente que, pela média ponderada, obtida através da notas descoladas da qualidade do desempenho dos estudantes, pareceria que os dois educandos teriam obtido a mesma qualidade de aprendizagem ao final dos quatro bimestres, pois que ambos estariam “aprovados” com a média 7,0 (sete).

Todavia, observando os registros da primeira e da segunda tabela, ficaremos cientes de que efetivamente o desempenho de ambos apresenta diferenças fundamentais, ainda que ambos tenham atingido a qualidade de “aprendizagem satisfatória” ao final. As tabelas revelam isso.

Vejamos:

- em adição, o estudante 1 teve desempenho com qualidade insatisfatória em sua aprendizagem (nota 3,0), já o estudante 2 apresentou uma aprendizagemplenamente satisfatória (nota 10,0);
- em subtração, o estudante 1 teve desempenho médio(nota 5,0), e o estudante 2, desempenho plenamentesatisfatório (nota 10);

- em multiplicação, ambos satisfatórios (ainda que o estudante 1 tenha obtido nota 7,0 e o estudante 2, nota 8,0);

- e, em divisão, o estudante 1 teve desempenho plenamente satisfatório (nota 9,0) e o estudante 2, desempenho insatisfatório (nota 4,0).

Contudo, ao final, ambos têm suas aprendizagens consideradas como satisfatórias (nota 7,0 para ambos).

Na prática, e na realidade, as qualidades dos desempenhos de ambos são diferentes, todavia, pelo uso da média ponderada de notas entre os bimestres, pareceria, ao final, que seus desempenhos são equivalentes.

Vale ressaltar que “média ponderada” altera os resultados mais que a “média simples”. Pela média simples, o estudante 1, ao final do ano letivo, teria um desempenho médio (6,0) e o estudante 2 teria um desempenho satisfatório (8,0), qualidades diferentes daquela que fora registrada pela “média ponderada”, isto é, satisfatório para ambos.

Por que tudo isso ocorre? Pelo “fetiche das notas escolares”, que registram supostas expressões da qualidade da aprendizagem dos educandos, mas que, efetivamente, operam por si mesmas, descoladas das qualidades que representariam; ou seja, operam à semelhança de como a mercadoria, o dinheiro e o capital operam, descolados da base material que sustentaria cada um desses fenômenos.

A consequência dessa prática desses procedimentos é que muitos — ou muitíssimos — estudantes seguem pela vida escolar e pela vida pessoal, com lacunas de conhecimentos e habilidades, ainda que, na escola, pelas “notas” e pelas “médias de notas” tivessem sido reconhecidos sem essas lacunas e, pois, aprovados. As médias podem aprovar e tem aprovado, mas, distorcem a realidade e enganam como temos visto. E, de alguma forma, desobriga o sistema de ensino, assim como os educadores em particular, de investir na qualidade do ensino-aprendizagem na escola. Pela “média” segue-se em frente, não para qualidade satisfatória.

Os exemplos que utilizei, neste texto, mostram que os estudantes, ainda que tenham obtido a aprovação por “médias de notas”, relativas aos variados conteúdos abordados numa unidade de ensino (bimestre, por exemplo), prosseguem carentes de aprendizagens significativas em alguns desses conteúdos.

A média de notas nivela as qualidades variadas, como bem diz a sua denominação, “pela média”. A média não reconhece as variações e ela só pode ser obtida pela ilusão da transformação indevida de “qualidade” em “quantidade de qualidade”.

A “média de notas” expressa uma aprendizagem supostamente satisfatória em todos os conteúdos ensinados e aprendidos num determinado período escolar, contudo, tomando individualmente cada um dos conteúdos, verificar-se-á que nem todos foram aprendidos satisfatoriamente; fato que implica em lacunas de conhecimentos e habilidades na escolaridade subsequente e na vida.
Por essa razão, observamos que educadores, na sequência das séries escolares que compõe nosso sistema de ensino, usualmente reclamam que os estudantes chegam às suas classes “sem base de conhecimentos necessários” para prosseguir nos estudos em andamento. Nosso sistema de ensino, operando com notas fetichizadas, isto é, sem vínculos com a efetiva qualidade da aprendizagem em cada um dos tópicos de conteúdos ensinados, possibilita isso e esconde a realidade das fragilidades e carências do nosso ensino.

As notas, com suas possibilidades de “médias de notas”, sejam elas simples ou ponderadas, não compõem uma solução satisfatória para o sistema escolar de ensino.

Reagindo a tudo o que foi exposto, poder-se-á argumentar ainda que, quando as notas são próximas uma das outras, a média é mais verdadeira. Por exemplo: 7,0 + 8,0 + 6,0 + 9,0 = 30/4 = 7,5. Certamente que a nota 7,5 (sete e meio) atua menos sobre a variação das notas individuais que nos exemplos anteriores, todavia, aqui, ainda permanece o que temos sinalizado, isto é: (01) permanece a indevida transformação de “qualidade” em “quantidade de qualidade”, que permite fazer as operações matemáticas da média, como também (02) permanece a média, que lineariza as variadas qualidades dos desempenhos (a qualidade representada indevidamente pelo 7,5 lineariza as variações das qualidades, também indevidamente, representadas por 7,0, 8,0, 6,0, 9,0). O fetiche permanece.

A essa altura, pergunta-se: “O que fazer, então?” A resposta é investir na qualidade de ensino-aprendizagem, de tal forma que tenhamos, em nossas escolas, todos estudantes aprendendo o necessário.


Em outro artigo desta série sobre notas escolares, abordei, com alguma amplitude, um possível caminho mais saudável para a prática docente e para o registro dos resultados das aprendizagens dos educandos, sem que seja sob a forma de “nota escolar”. Ver o texto: “Então, como atribuir notas, se essa é a prática em nossas escolas?” Haverá muito trabalho para mudar uma prática arraigada ao longo do tempo, mas é possível.





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2 comentários:

  1. Um prato cheio pras discussões com os professores. Obrigada, Luckesi!

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  2. Olá professor sou estudante de pedagogia, e estou na disciplina de Didatica e vi sua contribuição sobre o tema de avaliação no material que estamos abordando, fui pesquisar e aqui estou lendo esse texto, estou maravilhado com sua contribuição, muito obrigado.

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