Texto publicado anteriormente no Terra blog, Salvador, 01 de julho de 2013.
Cipriano Luckesi
Nestes recentes dias, a questão das notas escolares tem me instigado a
escrever sobre elas.
Temos uma tradição no Brasil — em outras partes do mundo também —
de que nota escolar representa a avaliação do desempenho do educando. Então,
neste texto, apresento algumas considerações sobre essa questão.
Primeiro, a distorção básica na compreensão epistemológica do que vem a
ser a nota escolar, como expressão da qualidade da aprendizagem do estudante.
Afinal o que é a nota?
A nota, hoje, por si, é uma forma de registrar, por
parte do educador escolar, o testemunho de que o educando
aprendeu o que lhe fora ensinado e que deveria ter aprendido. Registrar uma
nota, afinal, significa documentar numa memória oficial o testemunho da
qualidade atribuída ao resultado da aprendizagem de um educando numa
determinada unidade de conhecimento. O registro numérico, denominado de nota em
nosso sistema escolar, está dizendo o seguinte: “Este estudante foi acompanhado
por mim, ensinei-lhe tais e tais conteúdos e ele aprendeu suficientemente o que
deveria ter aprendido”.
Todavia, historicamente, temos transformado o registro (nota = anotação)
de um testemunho em “quantidade de qualidade”. “Qualidade” e “quantidade
de qualidade” são dois fenômenos distintos. O primeiro é um fenômeno que,
epistemologicamente, existe, o segundo, do ponto de vista epistemológico, não
existe.
A qualidade é atribuída a algo que tem propriedades “físicas”. Esse
“algo” pode ser um objeto, uma pessoa, uma obra de arte, um produto, os
resultados de uma ação. Epistemologicamente, se afirma que a qualidade não
existe por si, “não tem ser”, não tem substância.
Filósofos gregos e medievais acreditavam que “ser” e “valor” eram
equivalentes na sua existência; todavia, a modernidade, com o advento da
psicologia, produziu uma melhor descritiva dessas fenomenologias humanas, afirmando
que o ser “é” e o valor “vale”. Parece ser um trocadilho, porém, não o é.
O desvendamento epistemológico — expresso nessa simples frase dicotômica
— desatrela a autoridade do seu suposto direito de “autoridade absoluta”. Caso
a administração da autoridade estivesse baseada no “ser”, que é universal (à
medida que se refere a tudo o que existe), não haveria lugar para nenhuma
liberdade, nem mesmo de pensar, quanto mais de agir.
Se a autoridade se expressa em conformidade com as determinações do “ser”,
não há possibilidade da mínima fresta para a liberdade de pensar, expressar e
agir. Então, a frase dicotômica, acima relembrada é fundamental para termos
consciência de que a qualidade é relativa. Relativa a quê? É relativa à
realidade que ela qualifica. A realidade que ela qualifica é o seu
"chão", sua base epistemológica. E uma realidade, por mínimo que
seja, é diferente da outra, a menos que tenha sido produzida em série com todas
as variáveis controladas.
Esse fato nos lembra que a "qualidade" não é e não pode ser,
epistemologicamente, “quantidade de qualidade”, pois que (01) “quantidade” é
uma característica do que existe “extensamente”, realidade perceptível,
mensurável (o que é) e que (02) a “qualidade” é uma característica atribuída à
realidade (“extensa”, mensurável) pelo sujeito que pratica a avaliação.
As categorias gramaticais do “substantivo” e do “adjetivo” nos permitem
compreender isso. O "substantivo diz o que a coisa é” (“extensa”,
“mensurável”), nos informa a gramática. Já o "adjetivo qualifica o
substantivo”, isto é, qualifica o “aquilo que é”. No caso, “aquilo que é” pode
ter quantidade, mas “aquilo que é atribuído ao que é” não tem quantidade. Uma
atribuição não tem ipseidade. Então, se afirma que, epistemologicamente, a
qualidade não existe “em si”, mas “em outro”. A qualidade, que não é, existe
"naquilo que é".
É interessante observar que, em gramática, quando se deseja
"substanciar" um adjetivo (transformar um adjetivo em substantivo)
usa-se o expediente da "abstração". Beleza, por exemplo, é
hipostasiamento (colocação de realidade onde ela não existe) do adjetivo
"belo". Belo não existe por si, mas em outro, ao qual é atribuído —
mulher bela, casa bela… O mesmo ocorre com todos os outros adjetivos. Ao
resultado dessa prática gramatical se dá o nome "substantivo
abstrato"; no caso, beleza. Beleza não existe; existe "alguma
coisa" que é bela.
Tendo presente as considerações acima, vamos a um exemplo que permite
compreender a nota como “registro de um testemunho sobre a qualidade da aprendizagem
de um estudante”, da mesma forma que permite compreender o salto indevido, que
se faz na escola, de “qualidade” para “quantidade de qualidade”, algo que,
fenomenologicamente, não existe.
Um determinado professor ensinou adição e subtração, em aritmética. Um
estudante obteve, no contexto da nossa tradição escolar, a nota 10,0 em adição
e a nota 2,0 em subtração. Como registro de um testemunho da qualidade da
aprendizagem do educando, o 10,0, expressando a qualidade da aprendizagem em
adição, diz que esse estudante “aprendeu o que deveria ter aprendido” com
qualidade excelente; e, por outro lado, o registro 2,0 testemunha que esse
estudante não aprendeu o que deveria ter aprendido sobre subtração, por isso, a
qualidade de sua aprendizagem, ainda, é “insatisfatória”. O
"ainda"expressa que ela pode vir a ser "satisfatória", se
se tomar o cuidado de retrabalhá-la.
Contudo, como, em nossa escola, o registro da qualidade da
“aprendizagem excelente” e da “aprendizagem insatisfatória” é realizada pelos
símbolos numéricos “10,0” e “2,0”, usualmente, de modo automático, a
“qualidade” é transformada, indevidamente, em “quantidade de qualidade”,
e, então, a qualidade simbolizada por 10,0 passa a ser a “quantidade dez”
e a qualidade simbolizada por 2,0 passa a ser “quantidade dois”.
Fato que permite uma segunda distorção, isto é, fazer uma média entre as
duas qualidades expressas por dois símbolos numéricos transformados em duas
notas (no caso, quantidades), agindo como se estivesse fazendo uma média entre
duas qualidades, ou seja, 10 + 2 = 12, que, divido por 2, produz a média final
6.
Contudo, entre a “qualidade excelente” e a “qualidade insatisfatória”
não há possibilidade de se fazer média, ou seja, cada uma das qualidades
expressam desempenhos com qualidades diferentes; num caso, a qualidade foi
satisfatória (nada mais que isso) e, no outro, foi insatisfatória (também, nada
mais que isso). Não há média possível entre duas qualidades; somente
entre duas quantidades.
Então, na questão da nota escolar, ocorre, em primeiro lugar uma
distorção epistemológica: transforma-se “qualidade” em “quantidade de
qualidade”. Essa primeira distorção, permite a segunda distorção: fazer uma
média de notas.
A média final 6 (seis), no exemplo acima, informa que o estudante aprendeu
um pouco acima da média tanto adição quanto subtração, mas, de fato, ele
aprendeu a prática da adição com qualidade satisfatória e que aprendeu
insatisfatoriamente a prática da subtração.
A média de notas, de forma alguma, representa a mediania de conhecimentos
e habilidades entre duas possibilidades distintas (duas unidades de
conhecimento diferentes, no caso, adição e subtração). Essa distorção
ocorre devido termos transformado registro de ‘qualidade” em registro de
"quantidade de qualidade”. Todavia, de puros registros de
“qualidades” não se pode fazer média; porém, de “quantidades” se pode fazer
média.
Então, a média entre notas expressa uma “aparência” de que há uma média
de qualidade de aprendizagem do educando, mas efetivamente, a média entre notas
é a segunda distorção na fenomenologia das notas escolares.
Com as distorções apontadas, o que “tem acontecido na escola” é que a
nota, e não a aprendizagem, tem significado valioso, de tal forma que os
educandos procuram por nota mais do que por aprendizagem e os educadores
servem-se da nota como recurso de poder sobre os estudantes.
De fato, nesse contexto, a nota é um fetiche, à medida que ela expressa
alguma coisa que não existe — “quantidade de qualidade” — mas, nós
acreditamos que ela existe e atuamos como se ela existisse. Um fantasma que
ganha ares de realidade.
O efeito negativo desse processo é que os educadores e o sistema de
ensino se contentam com a média de “quantidade de qualidade” (que, por si, é
uma ficção) e esquecem da necessidade de construção de resultados satisfatórios
em todas as “unidades" de conhecimento ensinadas e aprendidas.
No exemplo da média, acima exposto, o “5.5.” (cinco e meio) significa
que o educando aprendeu adição e subtração, com uma qualidade acima da média,
no entanto, do ponto de vista da realidade, aprendeu adição, mas não subtração,
no entanto, como obteve a média de nota superior a cinco (acima do marco
"5", meio caminho para "10", considerado o ideal de nota) é
considerado como se tivesse aprendido satisfatoriamente as duas “unidades de
conhecimento” e, então, é aprovado. No caso, certamente que aprovado devidamente em
adição, mas, aprovado indevidamente em subtração.
Por isso, o ato de avaliar, quando efetivamente praticado como avaliação —
e não exame, que gera uma escala classificatória — é um aliado fundamental do
sucesso de todo gestor.
Não esquecer que o educador é o gestor da sala de aula. É ele que, em
nome do sistema de ensino (ele o representa na sala de aula) "gesta"
os resultados. Ele está comprometido com resultados satisfatórios para todos os
educandos, o que, politica e socialmente, propicia a democratização da
qualidade do ensino-aprendizagem.
Para que a avaliação seja tomada como aliada do gestor, importa ter
presente que, em sua dinâmica, ela revela a “qualidade da realidade”, o que
permite intervenções a favor do sucesso, quando este ainda não fora atingido.
Se o registro for efetuado com símbolos numéricos, como tem ocorrido em
nossas escolas, importa fugir do indevido salto de “qualidade”
para “quantidade de qualidade” e, então, ater-se à qualidade da realidade da
aprendizagem de cada educando em cada "unidade de conhecimento"
ensinada e aprendida,o que possibilita, se necessário, reorientá-lo.
No caso, os símbolos numéricos seriam símbolos que registram qualidades
e nada mais, fato que obrigaria o sistema de ensino, como um todo, e os
educadores, em suas escolas e em suas salas de aula, a agirem para que todos os
estudantes aprendam o que teriam que aprender em cada "unidade de conhecimento",
afinal, o necessário.
A avaliação tem o mérito de revelar ao gestor que a ação por ele
conduzida produziu resultados com uma determinada qualidade. Caso essa
qualidade já tenha atingido a satisfatoriedade, ótimo. Caso não o tenha, há o
que fazer para chegar a esse intento
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