quinta-feira, 2 de outubro de 2014

44 - As distorções epistemológicas nas práticas com as notas escolares


Texto publicado anteriormente no Terra blog, Salvador, 01 de julho de 2013.
Cipriano Luckesi



Nestes recentes dias, a questão das notas escolares tem me instigado a escrever sobre elas.

Temos uma tradição no Brasil — em outras partes do mundo também —  de que nota escolar representa a avaliação do desempenho do educando. Então, neste texto, apresento algumas considerações sobre essa questão.

Primeiro, a distorção básica na compreensão epistemológica do que vem a ser a nota escolar, como expressão da qualidade da aprendizagem do estudante.
Afinal o que é a nota?

A nota, hoje, por si, é uma forma de registrar, por parte do educador escolar,  o testemunho de que o educando aprendeu o que lhe fora ensinado e que deveria ter aprendido. Registrar uma nota, afinal, significa documentar numa memória oficial o testemunho da qualidade atribuída ao resultado da aprendizagem de um educando numa determinada unidade de conhecimento. O registro numérico, denominado de nota em nosso sistema escolar, está dizendo o seguinte: “Este estudante foi acompanhado por mim, ensinei-lhe tais e tais conteúdos e ele aprendeu suficientemente o que deveria ter aprendido”.

Todavia, historicamente, temos transformado o registro (nota = anotação) de um testemunho em “quantidade de qualidade”.  “Qualidade” e “quantidade de qualidade” são dois fenômenos distintos. O primeiro é um fenômeno que, epistemologicamente, existe, o segundo, do ponto de vista epistemológico, não existe.

A qualidade é atribuída a algo que tem propriedades “físicas”. Esse “algo” pode ser um objeto, uma pessoa, uma obra de arte, um produto, os resultados de uma ação. Epistemologicamente, se afirma que a qualidade não existe por si, “não tem ser”, não tem substância.

Filósofos gregos e medievais acreditavam que “ser” e “valor” eram equivalentes na sua existência; todavia, a modernidade, com o advento da psicologia, produziu uma melhor descritiva dessas fenomenologias humanas, afirmando que o ser “é” e o valor “vale”. Parece ser um trocadilho, porém, não o é.

O desvendamento epistemológico — expresso nessa simples frase dicotômica — desatrela a autoridade do seu suposto direito de “autoridade absoluta”. Caso a administração da autoridade estivesse baseada no “ser”, que é universal (à medida que se refere a tudo o que existe), não haveria lugar para nenhuma liberdade, nem mesmo de pensar, quanto mais de agir.

Se a autoridade se expressa em conformidade com as determinações do “ser”, não há possibilidade da mínima fresta para a liberdade de pensar, expressar e agir. Então, a frase dicotômica, acima relembrada é fundamental para termos consciência de que a qualidade é relativa. Relativa a quê? É relativa à realidade que ela qualifica. A realidade que ela qualifica é o seu "chão", sua base epistemológica. E uma realidade, por mínimo que seja, é diferente da outra, a menos que tenha sido produzida em série com todas as variáveis controladas.

Esse fato nos lembra que a "qualidade" não é e não pode ser, epistemologicamente, “quantidade de qualidade”, pois que (01) “quantidade” é uma característica do que existe “extensamente”, realidade perceptível, mensurável (o que é) e que (02) a “qualidade” é uma característica atribuída à realidade (“extensa”, mensurável) pelo sujeito que pratica a avaliação.

As categorias gramaticais do “substantivo” e do “adjetivo” nos permitem compreender isso. O "substantivo diz o que a coisa é” (“extensa”, “mensurável”), nos informa a gramática. Já o "adjetivo qualifica o substantivo”, isto é, qualifica o “aquilo que é”. No caso, “aquilo que é” pode ter quantidade, mas “aquilo que é atribuído ao que é” não tem quantidade. Uma atribuição não tem ipseidade. Então, se afirma que, epistemologicamente, a qualidade não existe “em si”, mas “em outro”. A qualidade, que não é, existe "naquilo que é".

É interessante observar que, em gramática, quando se deseja "substanciar" um adjetivo (transformar um adjetivo em substantivo) usa-se o expediente da "abstração". Beleza, por exemplo, é hipostasiamento (colocação de realidade onde ela não existe) do adjetivo "belo". Belo não existe por si, mas em outro, ao qual é atribuído — mulher bela, casa bela… O mesmo ocorre com todos os outros adjetivos. Ao resultado dessa prática gramatical se dá o nome "substantivo abstrato"; no caso, beleza. Beleza não existe; existe "alguma coisa" que é bela.

Tendo presente as considerações acima, vamos a um exemplo que permite compreender a nota como “registro de um testemunho sobre a qualidade da aprendizagem de um estudante”, da mesma forma que permite compreender o salto indevido, que se faz na escola, de “qualidade” para “quantidade de qualidade”, algo que, fenomenologicamente, não existe.

Um determinado professor ensinou adição e subtração, em aritmética. Um estudante obteve, no contexto da nossa tradição escolar, a nota 10,0 em adição e a nota 2,0 em subtração. Como registro de um testemunho da qualidade da aprendizagem do educando, o 10,0, expressando a qualidade da aprendizagem em adição, diz que esse estudante “aprendeu o que deveria ter aprendido” com qualidade excelente; e, por outro lado, o registro 2,0 testemunha que esse estudante não aprendeu o que deveria ter aprendido sobre subtração, por isso, a qualidade de sua aprendizagem, ainda, é “insatisfatória”. O "ainda"expressa que ela pode vir a ser "satisfatória", se se tomar o cuidado de retrabalhá-la.

Contudo, como, em nossa escola, o registro da qualidade  da “aprendizagem excelente” e da “aprendizagem insatisfatória” é realizada pelos símbolos numéricos  “10,0” e “2,0”, usualmente, de modo automático, a “qualidade” é transformada, indevidamente,  em “quantidade de qualidade”, e, então,  a qualidade simbolizada por 10,0 passa a ser a “quantidade dez” e a qualidade simbolizada por 2,0 passa a ser “quantidade dois”.

Fato que permite uma segunda distorção, isto é, fazer uma média entre as duas qualidades expressas por dois símbolos numéricos transformados em duas notas (no caso, quantidades), agindo como se estivesse fazendo uma média entre duas qualidades, ou seja, 10 + 2 = 12, que, divido por 2, produz a média final 6.

Contudo, entre a “qualidade excelente” e a “qualidade insatisfatória” não há possibilidade de se fazer média, ou seja, cada uma das qualidades expressam desempenhos com qualidades diferentes; num caso, a qualidade foi satisfatória (nada mais que isso) e, no outro, foi insatisfatória (também, nada mais que isso).  Não há média possível entre duas qualidades; somente entre duas quantidades. 

Então, na questão da nota escolar, ocorre, em primeiro lugar uma distorção epistemológica: transforma-se “qualidade” em “quantidade de qualidade”. Essa primeira distorção, permite a segunda distorção: fazer uma média de notas.

A média final 6 (seis), no exemplo acima, informa que o estudante aprendeu um pouco acima da média tanto adição quanto subtração, mas, de fato, ele aprendeu a prática da adição com qualidade satisfatória e que aprendeu insatisfatoriamente a prática da subtração.

A média de notas, de forma alguma, representa a mediania de conhecimentos e habilidades entre duas possibilidades distintas (duas unidades de conhecimento diferentes, no caso, adição e subtração). Essa distorção ocorre devido termos transformado registro de ‘qualidade” em registro de "quantidade de qualidade”. Todavia, de puros registros de “qualidades” não se pode fazer média; porém, de “quantidades” se pode fazer média.
Então, a média entre notas expressa uma “aparência” de que há uma média de qualidade de aprendizagem do educando, mas efetivamente, a média entre notas é a segunda distorção na fenomenologia das notas escolares.

Com as distorções apontadas, o que “tem acontecido na escola” é que a nota, e não a aprendizagem, tem significado valioso, de tal forma que os educandos procuram por nota mais do que por aprendizagem e os educadores servem-se da nota como recurso de poder sobre os estudantes.

De fato, nesse contexto, a nota é um fetiche, à medida que ela expressa alguma coisa que não existe —  “quantidade de qualidade” — mas, nós acreditamos que ela existe e atuamos como se ela existisse. Um fantasma que ganha ares de realidade.

O efeito negativo desse processo é que os educadores e o sistema de ensino se contentam com a média de “quantidade de qualidade” (que, por si, é uma ficção) e esquecem da necessidade de construção de resultados satisfatórios em todas as “unidades" de conhecimento ensinadas e aprendidas.

No exemplo da média, acima exposto, o “5.5.” (cinco e meio) significa que o educando aprendeu adição e subtração, com uma qualidade acima da média, no entanto, do ponto de vista da realidade, aprendeu adição, mas não subtração, no entanto, como obteve a média de nota superior a cinco (acima do marco "5", meio caminho para "10", considerado o ideal de nota) é considerado como se tivesse aprendido satisfatoriamente as duas “unidades de conhecimento” e, então, é aprovado. No caso, certamente que aprovado devidamente em adição, mas, aprovado indevidamente em subtração.

Por isso, o ato de avaliar, quando efetivamente praticado como avaliação — e não exame, que gera uma escala classificatória — é um aliado fundamental do sucesso de todo gestor.

Não esquecer que o educador é o gestor da sala de aula. É ele que, em nome do sistema de ensino (ele o representa na sala de aula) "gesta" os resultados. Ele está comprometido com resultados satisfatórios para todos os educandos, o que, politica e socialmente, propicia a democratização da qualidade do ensino-aprendizagem.
Para que a avaliação seja tomada como aliada do gestor, importa ter presente que, em sua dinâmica, ela revela a “qualidade da realidade”, o que permite intervenções a favor do sucesso, quando este ainda não fora atingido.

Se o registro for efetuado com símbolos numéricos, como tem ocorrido em nossas escolas, importa fugir do indevido salto de “qualidade” para “quantidade de qualidade” e, então, ater-se à qualidade da realidade da aprendizagem de cada educando em cada "unidade de conhecimento" ensinada e aprendida,o que possibilita, se necessário, reorientá-lo.

No caso, os símbolos numéricos seriam símbolos que registram qualidades e nada mais, fato que obrigaria o sistema de ensino, como um todo, e os educadores, em suas escolas e em suas salas de aula, a agirem para que todos os estudantes aprendam o que teriam que aprender em cada "unidade de conhecimento", afinal, o necessário.


A avaliação tem o mérito de revelar ao gestor que a ação por ele conduzida produziu resultados com uma determinada qualidade. Caso essa qualidade já tenha atingido a satisfatoriedade, ótimo. Caso não o tenha, há o que fazer para chegar a esse intento






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