Texto publicado anteriormente no Terra Blog, em 3/6/2014
Cipriano Luckesi
No texto anterior deste blog, sinalizei o fato que o avaliador (um dos papéis do educador em sala de aula) deve ter clareza sobre a configuração objetiva do que se está ensinando e, na outra ponta do processo, ter clareza do que se está propondo avaliar, que, afinal, está definido no que fora proposto para ensinar (planejamento do ensino) e efetivamente fora ensinado (prática do ensino).
Os conteúdos escolares, estabelecidos
nos currículos, têm limites claros tanto para quem ensina como para quem
aprende (certamente, deveria ser mais claro e preciso para quem ensina) e, no
caso da avaliação da aprendizagem escolar, importa que essa delimitação seja
plenamente respeitada, evitando que se solicite ao estudante um desempenho para
o qual não fora preparado pelo ensinado.
Em nosso cotidiano familiar, é comum a
cena de perguntarmos a uma criança, a um adolescente ou a um adulto, sobre como
fora seu desempenho no teste ao qual fora submetido na escola naquele dia.
Usualmente, perguntamos “Como foi o teste no dia de hoje lá na sua escola?” A
resposta, quase que unânime, é: “Ah, o professor ensinou uma coisa e perguntou
outra.” Ou, então: “O professor ensinou fácil e perguntou difícil.” Ou ainda:
“O professor ensinou simples e pediu complexo”. Nessas frases, os estudantes
estão nos dizendo que esteve ausente o respeito ao que fora ensinado e que
deveria ter sido aprendido.
Ou seja, ocorreu uma carência no
cumprimento do pacto ético de que os estudantes seriam avaliados sobre seu
desempenho no que fora ensinado e do modo como ensinado.
Daí a abordagem que fiz no artigo
anterior deste blog, relembrando aos leitores a necessidade de, na prática da
avaliação, atermo-nos nos limites objetivos do ensinado. Nada mais e nada menos
que isso.
Em função desse entendimento, sinalizei
ainda a falácia do argumento de que não se pode avaliar com objetividade (=
delimitação precisa) a aprendizagem dos educandos na escola em função de que a
subjetividade de cada um, dentro da turma de estudantes, impede que se pratique
uma avaliação tendo como base um padrão delimitado e objetivo de condutas
desejadas.
Relembrei no texto que, de fato, as
subjetividades são plenamente variáveis, desde que são únicas, mas os conteúdos
escolares não, desde que estão definidos nos currículos; e, que a função da
mediação do ensino tem por objetivo exatamente garantir que a variedade de
desempenho cognitivo (conhecimentos e habilidades) presente no início da
atividade de ensino de uma unidade de conhecimentos deverá caminhar para
a equalização de todos ao final do tempo estabelecido
institucionalmente para que o educador ensine e o educando aprenda aquilo que
está estabelecido para ser ensinado e aprendido.
Certamente, após essa argumentação,
fica para muitos leitores as perguntas: “Então, nesse contexto, para onde vai a
subjetividade de cada educando? Ela não é levada em consideração? Se a
subjetividade tem um papel fundamental no cotidiano de cada ser humano, como na
escola ela não vai ter?”
Respondo: A subjetividade de
cada um é condição de aprendizagem.
Não há como aprender alguma coisa a não
ser com a subjetividade de cada um de nós. Ela é o chão, o suporte, da
aprendizagem. Aprendemos (aprender é uma experiência interna) através da
relação ativa com o que se encontra fora de nós, seja essa aprendizagem mediada
exclusivamente pela relação direta com o mundo que nos cerca (aprendizagem pela
experiência cotidiana, tentando fazer, agir, compreender, nos confrontando com
as resistências da realidade e procurando novas possibilidades de uma ação bem
sucedida) ou aprendizagem indireta do mundo que nos cerca mediada por quem já
sabe e nos ensina. Nossa aprendizagem decorre da relação com o mundo, seja ela
diretamente ou mediada por que nos ensina; seja esse mundo constituído por
nossas experiências internas (que se objetivam quando nos compreendemos;
olhamos para elas), seja constituído por tudo o que está fora de nós.
A relação com o mundo que nos cerca, e
a consequente aprendizagem, ocorrem determinadas por todos os fatores que
compõe a nossa subjetividade — afetiva, cognitiva, motora — como também pelos
fatores que compõem o nosso objeto de conhecimento. A aprendizagem decorre da
relação do subjetivo com o objetivo. Ocorrem trocas entre esses dois
componentes, que possibilitam o sujeito apropriar-se do mundo, compreendendo-o,
transformando-o, e, ao mesmo tempo, constituir-se internamente como sujeito.
Um exemplo para compreender o que foi
exposto acima. As leis do movimento segundo Newton — que já estão elaboradas e
podem ser explicitadas com precisão, portanto de modo objetivo — serão
aprendidas por indivíduos que tem subjetividades diferenciadas. Essas leis
tanto podem ser aprendidas plenamente por um indivíduo tímido como por um
extrovertido, por um traumatizado por um abuso sexual na infância como por um
que nunca fora traumatizado dessa forma; serão aprendidas por um educando
originário de condições sociais de classe alta, como por um originário de
classe média ou baixa; ou por um estudante que tem origem rural ou urbana…
Todos com subjetividades diferenciadas podem aprender — com adequação — o mesmo
conteúdo científico
Cada um de nós traz em nossa
subjetividade inúmeras determinações que, ao longo do tempo de nossa vida, nos
configuraram. E é com essa subjetividade, assim constituída, que aprendemos,
nos apropriando do mundo que nos cerca, compreendendo-o, e, por isso, podendo
agir com ou sobre ele, tendo em vista atender nossas necessidades.
Então, a subjetividade, no ser humano,
é condição de aprendizagem de todo e qualquer conteúdo, informação,
procedimento, metodologia, algoritmo de ação, habilidade…
Aprendemos assentados sobre os recursos
de nossa subjetividade, que contém também a memória de todas as nossas
aprendizagens anteriores (pré-requisitos) mantidas fisiologicamente através de
sinapses neurológicas. O que se tem que aprender tem sua fonte externamente ao
sujeito, contudo, ele aprende com os recursos internos que possui.
Importa ainda estar ciente de que esses
recursos internos também se modificam e se aperfeiçoam constantemente, por meio
de novas aprendizagens, quer sejam elas cognitivas, afetivas ou motoras. Em
síntese, nos apropriamos da compreensão do mundo e dos modos de nele agir com
os recursos internos que temos.
Para o que estamos clarear neste texto,
o mais importante é que as subjetividades, ainda que variadas, possibilitam que
todos compreendam e ajam de modo equivalente, o que não significa mimetismo,
“cópia com papel carbono”; razão pela qual vários sujeitos podem se apropriar
do ensinamento de um conteúdo de modo equivalente, fato que possibilita
que, no ato de avaliar, a coleta de dados sobre o desempenho
de vários estudantes possa ser realizada em um mesmo tempo, através de um mesmo
instrumento de coleta de dados.
A aprendizagem dos conteúdos
curriculares da escola tem a ver com a aquisição daquilo que fora efetivamente
ensinado e não com a subjetividade de cada um. Esta última é o chão onde a
aprendizagem se assenta, ou seja, aquilo que todos os
estudantes de uma determinada turma escolar devem aprender, com qualidade
equivalente (= aprender bem).
Entendido isso, a pergunta subsequente
é: “Se, na escola, cuidamos da aprendizagem dos conteúdos escolares,
especificamente delimitados, como sinalizamos acima, não daremos atenção à
subjetividade dos educandos?”
Com certeza que sim. Como educadores,
deveremos dar atenção às condutas afetivas, éticas, relacionais dos nossos
educandos. Eles necessitam de aprender os conteúdos escolares estabelecidos
curricularmente, mas também necessitam de desenvolver-se como seres humanos que
cuidam de si, dos outros e do meio onde vivem. Necessitam de crescer em direção
à maturidade emocional, à vida adulta, tendo posse de sua subjetividade, assim
como dos conhecimentos que a humanidade produziu e transmitiu como uma
preciosidade, de geração em geração.
É a isso que, usualmente, damos a
denominação de “formação do educando”. Então, o educador cuidará de acolher o
educando da forma como chega à escola, com todos os seus costumes, modos de ser
e de se relacionar, assim como com os níveis de conhecimentos adquiridos, mas
também deverá confrontá-lo naquelas condutas que não favorecem seu
auto-crescimento, assim como sua relação com os outros e com o mundo, de tal
forma que possam crescer e se desenvolver, simultaneamente, no campo afetivo e
cognitivo, ciente de que são esferas distintas do seu ser.
Confrontar não significa conflitar ou
desqualificar. Simplesmente ajudar o educando a enxergar a vida e os modos de
ser a partir de uma ótica que seja mais saudável para si, para os outros e para
o meio onde se vive. Nada de autoritarismo, mas sim de diálogo, tendo como
mediador o que está acontecendo.
Então, numa prática avaliativa na
escola, necessitamos de estar cientes do que estamos avaliando e cuidando: da
formação da personalidade do educando? da aprendizagem dos conteúdos curriculares?
São campos distintos de vida e desempenho, ainda que formando um todo.
Com essa compreensão, entende-se que,
no ato de avaliar na prática escolar, não podemos confundir o que estamos
avaliando: conteúdos escolares? condutas afetivas? condutas motoras? Não
podemos confundi-las como se fossem a mesma coisa.
Quando não temos clareza do nosso
objeto de avaliação, podemos chegar a múltiplas confusões. Uma criança tímida,
com todos os dados de sua subjetividade, pode aprender adição; uma outra extrovertida,
também com todas as nuances de sua subjetividade, pode aprender o mesmo
conteúdo e de forma equivalente. E, assim por diante.
Na escola, necessitamos de cuidar da
formação da subjetividade de nossos educandos, assim como da cognição e das
habilidades, mas não podemos considerar campos variados da conduta humana como
se fossem iguais. Ainda que componentes de um mesmo todo, que é o
ser humano, as condutas cognitivas e afetivas (constitutivas da subjetividade)
são distintas e, dessa forma, necessitam ser abordadas na prática avaliativa.
Ao aprender conceitos conceitos filosóficos e científicos, o educando, e nós
também, adquirimos e amadurecemos componentes da nossa subjetividade; contudo,
na prática avaliativa, necessitamos de manter permanentemente ciência do fato
de que uma coisa é observar condutas afetivas e outra, distinta dessa, é
observar os caminhos da cognição. Caso não tenhamos esse cuidado, confundimos
as coisas, dificultando nossa vida de educadores, mas sobretudo a vida dos
nossos educandos.
A avaliação, como temos sinalizado múltiplas vezes, é nossa parceira na
busca do sucesso em nossas atividades em geral e na atividade educativa escolar
em específico, desde que aqui estamos falando dela. Contudo, ao praticar atos
de avaliar, necessitamos estar plenamente cientes do que estamos avaliando; no
caso, aqui abordado, sem confundir áreas contíguas da conduta humana, mas
distintas. Ao mesmo tempo, necessitamos de ter clareza sobre como cuidar da
subjetividade de nossos educandos, assim como sobre sua cognição relativa aos
conceitos, filosófica e cientificamente elaborados.
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