domingo, 5 de outubro de 2014

56 - Avaliação da aprendizagem: então, onde fica a subjetividade




Texto publicado anteriormente no Terra Blog, em 3/6/2014
Cipriano Luckesi



No texto anterior deste blog, sinalizei o fato que o avaliador (um dos papéis do educador em sala de aula) deve ter clareza sobre a configuração objetiva do que se está ensinando e, na outra ponta do processo, ter clareza do que se está propondo avaliar, que, afinal, está definido no que fora proposto para ensinar (planejamento do ensino) e efetivamente fora ensinado (prática do ensino).

Os conteúdos escolares, estabelecidos nos currículos, têm limites claros tanto para quem ensina como para quem aprende (certamente, deveria ser mais claro e preciso para quem ensina) e, no caso da avaliação da aprendizagem escolar, importa que essa delimitação seja plenamente respeitada, evitando que se solicite ao estudante um desempenho para o qual não fora preparado pelo ensinado.

Em nosso cotidiano familiar, é comum a cena de perguntarmos a uma criança, a um adolescente ou a um adulto, sobre como fora seu desempenho no teste ao qual fora submetido na escola naquele dia. Usualmente, perguntamos “Como foi o teste no dia de hoje lá na sua escola?” A resposta, quase que unânime, é: “Ah, o professor ensinou uma coisa e perguntou outra.” Ou, então: “O professor ensinou fácil e perguntou difícil.” Ou ainda: “O professor ensinou simples e pediu complexo”. Nessas frases, os estudantes estão nos dizendo que esteve ausente o respeito ao que fora ensinado e que deveria ter sido aprendido.

Ou seja, ocorreu uma carência no cumprimento do pacto ético de que os estudantes seriam avaliados sobre seu desempenho no que fora ensinado e do modo como ensinado.

Daí a abordagem que fiz no artigo anterior deste blog, relembrando aos leitores a necessidade de, na prática da avaliação, atermo-nos nos limites objetivos do ensinado. Nada mais e nada menos que isso.

Em função desse entendimento, sinalizei ainda a falácia do argumento de que não se pode avaliar com objetividade (= delimitação precisa) a aprendizagem dos educandos na escola em função de que a subjetividade de cada um, dentro da turma de estudantes, impede que se pratique uma avaliação tendo como base um padrão delimitado e objetivo de condutas desejadas.

Relembrei no texto que, de fato, as subjetividades são plenamente variáveis, desde que são únicas, mas os conteúdos escolares não, desde que estão definidos nos currículos; e, que a função da mediação do ensino tem por objetivo exatamente garantir que a variedade de desempenho cognitivo (conhecimentos e habilidades) presente no início da atividade de ensino de uma unidade de conhecimentos deverá caminhar para a equalização de todos ao final do tempo estabelecido institucionalmente para que o educador ensine e o educando aprenda aquilo que está estabelecido para ser ensinado e aprendido.

Certamente, após essa argumentação, fica para muitos leitores as perguntas: “Então, nesse contexto, para onde vai a subjetividade de cada educando? Ela não é levada em consideração? Se a subjetividade tem um papel fundamental no cotidiano de cada ser humano, como na escola ela não vai ter?”

Respondo: A subjetividade de cada um é condição de aprendizagem.

Não há como aprender alguma coisa a não ser com a subjetividade de cada um de nós. Ela é o chão, o suporte, da aprendizagem. Aprendemos (aprender é uma experiência interna) através da relação ativa com o que se encontra fora de nós, seja essa aprendizagem mediada exclusivamente pela relação direta com o mundo que nos cerca (aprendizagem pela experiência cotidiana, tentando fazer, agir, compreender, nos confrontando com as resistências da realidade e procurando novas possibilidades de uma ação bem sucedida) ou aprendizagem indireta do mundo que nos cerca mediada por quem já sabe e nos ensina. Nossa aprendizagem decorre da relação com o mundo, seja ela diretamente ou mediada por que nos ensina; seja esse mundo constituído por nossas experiências internas (que se objetivam quando nos compreendemos; olhamos para elas), seja constituído por tudo o que está fora de nós.

A relação com o mundo que nos cerca, e a consequente aprendizagem, ocorrem  determinadas por todos os fatores que compõe a nossa subjetividade — afetiva, cognitiva, motora — como também pelos fatores que compõem o nosso objeto de conhecimento. A aprendizagem decorre da relação do subjetivo com o objetivo. Ocorrem trocas entre esses dois componentes, que possibilitam o sujeito apropriar-se do mundo, compreendendo-o, transformando-o, e, ao mesmo tempo, constituir-se internamente como sujeito.

Um exemplo para compreender o que foi exposto acima. As leis do movimento segundo Newton — que já estão elaboradas e podem ser explicitadas com precisão, portanto de modo objetivo — serão aprendidas por indivíduos que tem subjetividades diferenciadas. Essas leis tanto podem ser aprendidas plenamente por um indivíduo tímido como por um extrovertido, por um traumatizado por um abuso sexual na infância como por um que nunca fora traumatizado dessa forma; serão aprendidas por um educando originário de condições sociais de classe alta, como por um originário de classe média ou baixa; ou por um estudante que tem origem rural ou urbana… Todos com subjetividades diferenciadas podem aprender — com adequação — o mesmo conteúdo científico

Cada um de nós traz em nossa subjetividade inúmeras determinações que, ao longo do tempo de nossa vida, nos configuraram. E é com essa subjetividade, assim constituída, que aprendemos, nos apropriando do mundo que nos cerca, compreendendo-o, e, por isso, podendo agir com ou sobre ele, tendo em vista atender nossas necessidades.

Então, a subjetividade, no ser humano, é condição de aprendizagem de todo e qualquer conteúdo, informação, procedimento, metodologia, algoritmo de ação, habilidade…
Aprendemos assentados sobre os recursos de nossa subjetividade, que contém também a memória de todas as nossas aprendizagens anteriores (pré-requisitos) mantidas fisiologicamente através de sinapses neurológicas. O que se tem que aprender tem sua fonte externamente ao sujeito, contudo, ele aprende com os recursos internos que possui.

Importa ainda estar ciente de que esses recursos internos também se modificam e se aperfeiçoam constantemente, por meio de novas aprendizagens, quer sejam elas cognitivas, afetivas ou motoras. Em síntese, nos apropriamos da compreensão do mundo e dos modos de nele agir com os recursos internos que temos.

Para o que estamos clarear neste texto, o mais importante é que as subjetividades, ainda que variadas, possibilitam que todos compreendam e ajam de modo equivalente, o que não significa mimetismo, “cópia com papel carbono”; razão pela qual vários sujeitos podem se apropriar do ensinamento de um conteúdo de modo equivalente, fato que possibilita que, no ato de avaliar, a coleta de dados sobre o desempenho de vários estudantes possa ser realizada em um mesmo tempo, através de um mesmo instrumento de coleta de dados.

A aprendizagem dos conteúdos curriculares da escola tem a ver com a aquisição daquilo que fora efetivamente ensinado e não com a subjetividade de cada um. Esta última é o chão onde a aprendizagem se assenta, ou seja, aquilo que todos os estudantes de uma determinada turma escolar devem aprender, com qualidade equivalente (= aprender bem).

Entendido isso, a pergunta subsequente é: “Se, na escola, cuidamos da aprendizagem dos conteúdos escolares, especificamente delimitados, como sinalizamos acima, não daremos atenção à subjetividade dos educandos?”

Com certeza que sim. Como educadores, deveremos dar atenção às condutas afetivas, éticas, relacionais dos nossos educandos. Eles necessitam de aprender os conteúdos escolares estabelecidos curricularmente, mas também necessitam de desenvolver-se como seres humanos que cuidam de si, dos outros e do meio onde vivem. Necessitam de crescer em direção à maturidade emocional, à vida adulta, tendo posse de sua subjetividade, assim como dos conhecimentos que a humanidade produziu e transmitiu como uma preciosidade, de geração em geração.

É a isso que, usualmente, damos a denominação de “formação do educando”. Então, o educador cuidará de acolher o educando da forma como chega à escola, com todos os seus costumes, modos de ser e de se relacionar, assim como com os níveis de conhecimentos adquiridos, mas também deverá confrontá-lo naquelas condutas que não favorecem seu auto-crescimento, assim como sua relação com os outros e com o mundo, de tal forma que possam crescer e se desenvolver, simultaneamente, no campo afetivo e cognitivo, ciente de que são esferas distintas do seu ser.

Confrontar não significa conflitar ou desqualificar. Simplesmente ajudar o educando a enxergar a vida e os modos de ser a partir de uma ótica que seja mais saudável para si, para os outros e para o meio onde se vive. Nada de autoritarismo, mas sim de diálogo, tendo como mediador o que está acontecendo.

Então, numa prática avaliativa na escola, necessitamos de estar cientes do que estamos avaliando e cuidando: da formação da personalidade do educando? da aprendizagem dos conteúdos curriculares? São campos distintos de vida e desempenho, ainda que formando um todo.

Com essa compreensão, entende-se que, no ato de avaliar na prática escolar, não podemos confundir o que estamos avaliando: conteúdos escolares? condutas afetivas? condutas motoras? Não podemos confundi-las como se fossem a mesma coisa.

Quando não temos clareza do nosso objeto de avaliação, podemos chegar a múltiplas confusões. Uma criança tímida, com todos os dados de sua subjetividade, pode aprender adição; uma outra extrovertida, também com todas as nuances de sua subjetividade, pode aprender o mesmo conteúdo e de forma equivalente. E, assim por diante.

Na escola, necessitamos de cuidar da formação da subjetividade de nossos educandos, assim como da cognição e das habilidades, mas não podemos considerar campos variados da conduta humana como se fossem iguais. Ainda que componentes de um mesmo todo, que é o ser humano, as condutas cognitivas e afetivas (constitutivas da subjetividade) são distintas e, dessa forma, necessitam ser abordadas na prática avaliativa. Ao aprender conceitos conceitos filosóficos e científicos, o educando, e nós também, adquirimos e amadurecemos componentes da nossa subjetividade; contudo, na prática avaliativa, necessitamos de manter permanentemente ciência do fato de que uma coisa é observar condutas afetivas e outra, distinta dessa, é observar os caminhos da cognição. Caso não tenhamos esse cuidado, confundimos as coisas, dificultando nossa vida de educadores, mas sobretudo a vida dos nossos educandos.

A avaliação, como temos sinalizado múltiplas vezes, é nossa parceira na busca do sucesso em nossas atividades em geral e na atividade educativa escolar em específico, desde que aqui estamos falando dela. Contudo, ao praticar atos de avaliar, necessitamos estar plenamente cientes do que estamos avaliando; no caso, aqui abordado, sem confundir áreas contíguas da conduta humana, mas distintas. Ao mesmo tempo, necessitamos de ter clareza sobre como cuidar da subjetividade de nossos educandos, assim como sobre sua cognição relativa aos conceitos, filosófica e cientificamente elaborados.






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