segunda-feira, 6 de outubro de 2014

58 - Avaliação da aprendizagem escolar: em busca de um caminho


Salvador, 06 de outubro de 2014
Cipriano Luckesi



No modelo de escola que se implantou no ocidente, a partir do século XVI, entre outros, havia o desafio com o qual nos deparamos ainda hoje, ainda que em outra perspectiva: saber se o educando aprendeu o que deveria ter aprendido, assim como saber com que qualidade isso ocorreu.

Na Ratio Sudiorum (Ratio atque institutio studiorum Societatis Jesus, Ordenamento e institucionalização dos estudos na Sociedade de Jesus), documento publicado em 1599, pela Ordem dos Padres Jesuítas, encontra-se um capítulo sobre “Os exames escritos e orais”, cujas determinações, de certa forma e em certo sentido, são cumpridas até os dias de hoje em nossas escolas.

Na Ratio Studiorum, estão configurados dois modos de acompanhamento da aprendizagem do educando: a Pauta do professor e os Exames escritos e orais.

A Pauta do professor era o que, hoje, denominamos de caderneta, porém, com mais detalhes. Nela, seriam anotados as condutas e aprendizagens de cada um dos estudantes (à época, o termo utilizado para expressar o aprendiz escolar era “estudante”) ao longo do ano letivo. Propriamente seriam os registros do acompanhamento do estudante durante o ano letivo.

Essas anotações deveriam ser utilizadas, pela Banca Examinadora, responsável pela promoção (ou não) do estudante, conjuntamente com os resultados dos exames escritos e orais, que ocorriam exclusivamente no final do ano letivo.

Ao longo dos mais de quatrocentos anos que nos separam da data de 1599, perdemos o hábito de nos servirmos da “Pauta do professor” e nos apegamos aos exames escritos e orais (hoje, exclusivamente escritos).

Os exames, segundo esse documento, ocorreriam uma vez por ano, ao final do ano letivo. Hoje, praticamente não nos servimos da Pauta do professor e, minimamente, praticamos exames a cada dois meses dentro do ano letivo. Usualmente, são os denominados bimestres letivos. A longo do tempo, priorizamos os exames, descuidando um tanto do acompanhamento. O acompanhamento tinha a ver com a construção da aprendizagem e com a formação do educando.

Os exames, tanto nos inícios da escola moderna, no século XVI, como hoje, tem como centro de sua atenção a classificação do estudante, minimamente, em “aprovado” ou “reprovado”.

Parece (não tenho certeza factual histórica) que, com a adesão ao Sistema Internacional de Pesos e Medidas, pós Revolução Francesa, adotamos as escalas classificatórias, na vida escolar, que, hoje, de modo usual, podem, variar de 0 (zero) a 100 (cem) ou de 0 (zero) a 10 (dez), em conformidade com o padrão adotado em épocas diferentes da história educacional de cada país. Hoje, no Brasil, predomina a escala de 0 (zero) a 10 (dez).

E, quando um sistema de ensino, ou uma escola, adota o registro dos resultados da aprendizagem por conceitos (escala de letras ou escala de adjetivos), usualmente são compreendidos e/ou traduzidos por meio de uma tabela de valores numéricos, que sempre serve de parâmetro para os atos classificatórios, isto é, conceitos são atribuídos por referência aos registros numéricos inteiros ou decimais.

A primeira vez que se iniciou a falar em avaliação como diversa dos exames, ocorreu em torno de trezentos e vinte anos após a publicação da Ratio Studiorum.
Em 1930, um jovem educador norte-americano, Ralph Tyler, aos 28 anos de idade, após um doutoramento, iniciou a propor que não era possível permanecer com a tradição de altos níveis de reprovação na escola; em torno de 70% dos estudantes nos USA eram reprovados. Era preciso encontrar uma metodologia pela qual 100 (cem) crianças ingressassem na escola e 100 (cem) crianças aprendessem o que deveriam aprender.

O método proposto por ele para obter esse sucesso foi o mais óbvio que podemos imaginar e que, fora da escola, o utilizamos quando desejamos resultados satisfatórios: (01) ensine um conteúdo; (02) diagnostique a aprendizagem: (03) se o estudante aprendeu, ótimo, segue em frente; se não aprendeu, ensine de novo.

Afinal, o óbvio para quem busca o sucesso da própria ação; porém, difícil de ser praticado na escola, envolvida com muitos fatores socioculturais, tais como autoridade, disciplina, controle social, castigo.

Tyler faleceu em 1994 sem ver o efetivo uso pelos educadores escolares dessa sua simples e óbvia proposição.

No Brasil, sob influência dos modelos norte-americanos, iniciamos a tentar compreender e praticar essa proposta em torno do final dos anos 1960 e inícios dos anos 1970. De lá para cá, já se passaram quarenta e mais anos e, infelizmente, ainda não conseguimos transitar do ato de examinar para o ato de avaliar, tendo em vista o acompanhamento da aprendizagem dos nossos educandos. Acompanhamento quer dizer  --- identificação da situação e intervenção de correção, se necessária.

O que caracteriza o ato de avaliar? O ato de avaliar, na escola, do ponto de vista individual de cada estudante, tem por destino diagnosticar sua aprendizagem em torno dos conteúdos ensinados, desde que o diagnóstico subsidia novas decisões na perspectiva de atingir os objetivos desejados.
Se se constata, através da avaliação, que o estudante já atingiu a qualidade desejada nos resultados da ação, ótimo; caso não tenha sido atingido esse nível de qualidade desejado, novos investimentos são e serão necessários para o obtê-lo.

Nesse contexto, não se classifica o educando, mas sim diagnostica-se sua aprendizagem, tendo em vista garantir-lhe a aprendizagem necessária, estabelecida no currículo escolar e no planejamento de ensino adequado ao seu nível de desenvolvimento, idade e série.

Os exames são classificatórios, por isso, úteis nas ocasiões de concurso, onde o candidato está em busca de uma vaga numa instituição ou numa premiação. Já a avaliação é diagnóstica, subsidiando novos investimentos até que se chegue aos resultados desejados.

A avaliação é parceira na caminhada de todo e qualquer gestor. Gestor é aquele que “gesta” resultados. O educador na sala de aulas é o seu gestor, aquele que atua para produzir resultados positivos; o mesmo diga-se do diretor de uma escola, pois que, em seu papel, deve trabalhar para “gestar” os resultados de sua instituição. E, assim por diante, em todas as instâncias educativas, o gestor tem por obrigação conduzir a ação para que produza resultados positivos (escola, secretarias de educação, ministério da educação). E, a avaliação será sempre a parceira a anunciar o sucesso de uma ação ou a necessidade de mais investimentos.

O ato de avaliar a aprendizagem do educando --- que, epistemologicamente, se configura como uma investigação --- exige, em primeiro lugar, uma coleta de dados sobre o seu desempenho, que seja sistemática (cobrindo todos os conteúdos essenciais ensinados), compreensível (importa que o estudante compreenda o que se lhe pergunta), compatível com o ensinado (solicita-se ao educando desempenho satisfatório naquilo que efetivamente foi ensinado, nada fora disso), precisão no que se solicita (educador e educando compreendem com o mesmo significado o que se solicita; o significado do que se solicita não pode ter equívocos).

Feita a coleta de dados sobre o desempenho do estudante em sua aprendizagem, o ato de avaliar exige, como segundo passo, que o desempenho, descrito pelos dados, seja qualificado.

Isto se faz pela comparação entre os dados da realidade do desempenho do educando com um critério de qualidade. Critério de qualidade é o padrão de qualidade necessário para o que está sendo avaliado. Qual é a conduta esperada e satisfatória de um educando num determinado conteúdo?

E, em terceiro e último lugar, caso a qualidade desejada ainda não tenha sido atingida, há necessidade de uma intervenção (no caso da escola: ensinar de novo; reorientação) para que o desempenho do estudante chegue à qualidade necessária e desejada.

Esses três segmentos do ato de avaliar exigem cuidados por parte do educador, assim como do sistema de ensino (direção da escola, secretários de educação, ministro da educação do país), isto é, importa rigor metodológico no uso desses passos, afim de que a avaliação possa efetivamente ser avalição e, dessa forma, cumprir sua função.

Perguntar-se-á: “Então, aboliremos a certificação do educando, desde que seguiremos diagnosticando e reorientando sempre? ” Não, de forma alguma.

Ao contrário, praticaremos uma certificação mais plena do que as atuais. No modelo, ainda vigente em nossas escolas, a certificação tem sua base nas médias de notas escolares, fato que pode nos levar ao engano (ver meu livro Sobre notas escolares, Cortez Editora, São Paulo, 2014).

Hoje, um educando poderá ser certificado por uma média de notas (aliás, dessa forma tem ocorrido), o que pode significar que ele sabe mais um conteúdo do que outro, porém a média de notas diz que ele tem a posse satisfatória de todos eles (exemplo, um educando aprendeu bem adição em matemática e obteve nota 10 [dez], contudo, aprendeu muito mal subtração e obteve nota 2,0 [dois]; pela média, sua nota final é 6,0 [seis], nota que aprova). Essa média, obtida entre notas escolares de múltiplos valores, que certifica o estudante, nos engana, pois, no caso do exemplo, parece que ele aprendeu adição e subtração, mas, de fato, só aprendeu adição. Isso ocorre com o ensino-aprendizagem de outros conteúdos escolares.

Numa verdadeira prática de avaliação --- diagnóstico e reorientação ---, não haverá necessidade de certificação por uma média de notas; haverá, sim, uma certificação (testemunho) de que o estudante foi ensinado, acompanhado e aprendeu o que deveria ter aprendido.

Através da avaliação, que sinaliza ao gestor a necessidade de reinvestimento na aprendizagem do educando, ele chegará a uma aprendizagem satisfatória do que deveria aprender e, então, receberá uma certificação (um testemunho oficial), que estará afirmando que, no caso, aprendeu plenamente todos os conteúdos ensinados como essenciais. Então, não haverá o engano, próprio das médias entre notas escolares.

A certificação continuará a existir, porém como um testemunho do educador de ele acompanhou esse estudante e trabalhou para que ele aprendesse o que teria que aprendeu e... aprendeu.

O uso da avaliação e não dos exames no percurso escolar é o recurso a ser utilizado no caminho para o sucesso do ensino por parte do professor e da aprendizagem por parte do educando. Os exames permanecerão como recurso de seleção. Como a escola, por si, não é e não deve ser seletiva, deve, em seu espaço interno, servir-se da avaliação e não dos exames. Estes serão úteis e necessários às atividades seletivas; mas, também, desde que praticados com o rigor metodológico, acima indicado, tendo em vista a coleta de dados para a avaliação.


Para aprofundamento das compreensões expostas neste texto, estudar os seguintes livros do autor: Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições, Cortez Editora, São Paulo, 22ª edição, 2012; Avaliação da aprendizagem: componente do ato pedagógico, Cortez Editora, São Paulo, 1ª edição, 2011; Sobre notas escolares: distorções e possibilidades, Cortez Editora, São Paulo, 2014.







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