Salvador, 06 de outubro de 2014
Cipriano Luckesi
Cipriano Luckesi
No modelo de
escola que se implantou no ocidente, a partir do século XVI, entre outros,
havia o desafio com o qual nos deparamos ainda hoje, ainda que em outra
perspectiva: saber se o educando aprendeu o que deveria ter aprendido, assim
como saber com que qualidade isso ocorreu.
Na Ratio Sudiorum (Ratio atque institutio studiorum Societatis Jesus, Ordenamento e institucionalização dos
estudos na Sociedade de Jesus), documento publicado em 1599, pela Ordem dos
Padres Jesuítas, encontra-se um capítulo sobre “Os exames escritos e orais”,
cujas determinações, de certa forma e em certo sentido, são cumpridas até os
dias de hoje em nossas escolas.
Na Ratio Studiorum, estão configurados dois
modos de acompanhamento da aprendizagem do educando: a Pauta do professor e os
Exames escritos e orais.
A Pauta do
professor era o que, hoje, denominamos de caderneta, porém, com mais detalhes.
Nela, seriam anotados as condutas e aprendizagens de cada um dos estudantes (à
época, o termo utilizado para expressar o aprendiz escolar era “estudante”) ao
longo do ano letivo. Propriamente seriam os registros do acompanhamento do estudante
durante o ano letivo.
Essas
anotações deveriam ser utilizadas, pela Banca Examinadora, responsável pela
promoção (ou não) do estudante, conjuntamente com os resultados dos exames
escritos e orais, que ocorriam exclusivamente no final do ano letivo.
Ao longo dos
mais de quatrocentos anos que nos separam da data de 1599, perdemos o hábito de
nos servirmos da “Pauta do professor” e nos apegamos aos exames escritos e
orais (hoje, exclusivamente escritos).
Os exames,
segundo esse documento, ocorreriam uma vez por ano, ao final do ano letivo.
Hoje, praticamente não nos servimos da Pauta do professor e, minimamente,
praticamos exames a cada dois meses dentro do ano letivo. Usualmente, são os
denominados bimestres letivos. A longo do tempo, priorizamos os exames,
descuidando um tanto do acompanhamento. O acompanhamento tinha a ver com a
construção da aprendizagem e com a formação do educando.
Os exames,
tanto nos inícios da escola moderna, no século XVI, como hoje, tem como centro
de sua atenção a classificação do estudante, minimamente, em “aprovado” ou
“reprovado”.
Parece (não
tenho certeza factual histórica) que, com a adesão ao Sistema Internacional de
Pesos e Medidas, pós Revolução Francesa, adotamos as escalas classificatórias, na
vida escolar, que, hoje, de modo usual, podem, variar de 0 (zero) a 100 (cem)
ou de 0 (zero) a 10 (dez), em conformidade com o padrão adotado em épocas
diferentes da história educacional de cada país. Hoje, no Brasil, predomina a
escala de 0 (zero) a 10 (dez).
E, quando um
sistema de ensino, ou uma escola, adota o registro dos resultados da
aprendizagem por conceitos (escala de letras ou escala de adjetivos), usualmente
são compreendidos e/ou traduzidos por meio de uma tabela de valores numéricos,
que sempre serve de parâmetro para os atos classificatórios, isto é, conceitos
são atribuídos por referência aos registros numéricos inteiros ou decimais.
A primeira vez
que se iniciou a falar em avaliação como diversa dos exames, ocorreu em torno
de trezentos e vinte anos após a publicação da Ratio Studiorum.
Em 1930, um
jovem educador norte-americano, Ralph Tyler, aos 28 anos de idade, após um
doutoramento, iniciou a propor que não era possível permanecer com a tradição
de altos níveis de reprovação na escola; em torno de 70% dos estudantes nos USA
eram reprovados. Era preciso encontrar uma metodologia pela qual 100 (cem)
crianças ingressassem na escola e 100 (cem) crianças aprendessem o que deveriam
aprender.
O método
proposto por ele para obter esse sucesso foi o mais óbvio que podemos imaginar
e que, fora da escola, o utilizamos quando desejamos resultados satisfatórios:
(01) ensine um conteúdo; (02) diagnostique a aprendizagem: (03) se o estudante
aprendeu, ótimo, segue em frente; se não aprendeu, ensine de novo.
Afinal, o
óbvio para quem busca o sucesso da própria ação; porém, difícil de ser
praticado na escola, envolvida com muitos fatores socioculturais, tais como
autoridade, disciplina, controle social, castigo.
Tyler faleceu
em 1994 sem ver o efetivo uso pelos educadores escolares dessa sua simples e
óbvia proposição.
No Brasil, sob
influência dos modelos norte-americanos, iniciamos a tentar compreender e praticar
essa proposta em torno do final dos anos 1960 e inícios dos anos 1970. De lá
para cá, já se passaram quarenta e mais anos e, infelizmente, ainda não
conseguimos transitar do ato de examinar para o ato de avaliar, tendo em vista
o acompanhamento da aprendizagem dos
nossos educandos. Acompanhamento quer dizer --- identificação da situação e intervenção de
correção, se necessária.
O que
caracteriza o ato de avaliar? O ato de avaliar, na escola, do ponto de vista
individual de cada estudante, tem por destino diagnosticar sua aprendizagem em torno
dos conteúdos ensinados, desde que o diagnóstico subsidia novas decisões na
perspectiva de atingir os objetivos desejados.
Se se
constata, através da avaliação, que o estudante já atingiu a qualidade desejada
nos resultados da ação, ótimo; caso não tenha sido atingido esse nível de
qualidade desejado, novos investimentos são e serão necessários para o obtê-lo.
Nesse
contexto, não se classifica o educando, mas sim diagnostica-se sua
aprendizagem, tendo em vista garantir-lhe a aprendizagem necessária,
estabelecida no currículo escolar e no planejamento de ensino adequado ao seu
nível de desenvolvimento, idade e série.
Os exames são
classificatórios, por isso, úteis nas ocasiões de concurso, onde o candidato
está em busca de uma vaga numa instituição ou numa premiação. Já a avaliação é
diagnóstica, subsidiando novos investimentos até que se chegue aos resultados
desejados.
A avaliação é
parceira na caminhada de todo e qualquer gestor. Gestor é aquele que “gesta”
resultados. O educador na sala de aulas é o seu gestor, aquele que atua para
produzir resultados positivos; o mesmo diga-se do diretor de uma escola, pois
que, em seu papel, deve trabalhar para “gestar” os resultados de sua
instituição. E, assim por diante, em todas as instâncias educativas, o gestor
tem por obrigação conduzir a ação para que produza resultados positivos
(escola, secretarias de educação, ministério da educação). E, a avaliação será sempre
a parceira a anunciar o sucesso de uma ação ou a necessidade de mais
investimentos.
O ato de
avaliar a aprendizagem do educando --- que, epistemologicamente, se configura
como uma investigação --- exige, em primeiro lugar, uma coleta de dados sobre o seu desempenho, que seja sistemática (cobrindo todos os conteúdos
essenciais ensinados), compreensível
(importa que o estudante compreenda o que se lhe pergunta), compatível com o ensinado (solicita-se
ao educando desempenho satisfatório naquilo que efetivamente foi ensinado, nada
fora disso), precisão no que se solicita (educador
e educando compreendem com o mesmo significado o que se solicita; o significado
do que se solicita não pode ter equívocos).
Feita a coleta
de dados sobre o desempenho do estudante em sua aprendizagem, o ato de avaliar exige,
como segundo passo, que o desempenho, descrito pelos dados, seja qualificado.
Isto se faz
pela comparação entre os dados da realidade do desempenho do educando com um
critério de qualidade. Critério de qualidade é o padrão de qualidade necessário
para o que está sendo avaliado. Qual é a conduta esperada e satisfatória de um
educando num determinado conteúdo?
E, em terceiro
e último lugar, caso a qualidade desejada ainda não tenha sido atingida, há
necessidade de uma intervenção (no caso da escola: ensinar de novo;
reorientação) para que o desempenho do estudante chegue à qualidade necessária
e desejada.
Esses três
segmentos do ato de avaliar exigem cuidados por parte do educador, assim como
do sistema de ensino (direção da escola, secretários de educação, ministro da
educação do país), isto é, importa rigor metodológico no uso desses passos,
afim de que a avaliação possa efetivamente ser avalição e, dessa forma, cumprir
sua função.
Perguntar-se-á:
“Então, aboliremos a certificação do educando, desde que
seguiremos diagnosticando e reorientando sempre? ” Não, de forma alguma.
Ao contrário,
praticaremos uma certificação mais plena do que as atuais. No modelo, ainda vigente
em nossas escolas, a certificação tem sua base nas médias de notas escolares, fato
que pode nos levar ao engano (ver meu livro Sobre notas escolares, Cortez
Editora, São Paulo, 2014).
Hoje, um
educando poderá ser certificado por uma média de notas (aliás, dessa forma tem
ocorrido), o que pode significar que ele sabe mais um conteúdo do que outro, porém
a média de notas diz que ele tem a posse satisfatória de todos eles (exemplo,
um educando aprendeu bem adição em matemática e obteve nota 10 [dez], contudo,
aprendeu muito mal subtração e obteve nota 2,0 [dois]; pela média, sua nota
final é 6,0 [seis], nota que aprova). Essa média, obtida entre notas escolares
de múltiplos valores, que certifica o estudante, nos engana, pois, no caso do
exemplo, parece que ele aprendeu adição e subtração, mas, de fato, só aprendeu
adição. Isso ocorre com o ensino-aprendizagem de outros conteúdos escolares.
Numa
verdadeira prática de avaliação --- diagnóstico e reorientação ---, não haverá
necessidade de certificação por uma média de notas; haverá, sim, uma
certificação (testemunho) de que o estudante foi ensinado, acompanhado e aprendeu
o que deveria ter aprendido.
Através da
avaliação, que sinaliza ao gestor a necessidade de reinvestimento na
aprendizagem do educando, ele chegará a uma aprendizagem satisfatória do que
deveria aprender e, então, receberá uma certificação (um testemunho oficial),
que estará afirmando que, no caso, aprendeu plenamente todos os conteúdos
ensinados como essenciais. Então, não haverá o engano, próprio das médias entre
notas escolares.
A certificação
continuará a existir, porém como um testemunho do educador de ele acompanhou
esse estudante e trabalhou para que ele aprendesse o que teria que aprendeu
e... aprendeu.
O uso da
avaliação e não dos exames no percurso escolar é o recurso a ser utilizado no
caminho para o sucesso do ensino por parte do professor e da aprendizagem por
parte do educando. Os exames permanecerão como recurso de seleção. Como a
escola, por si, não é e não deve ser seletiva, deve, em seu espaço interno,
servir-se da avaliação e não dos exames. Estes serão úteis e necessários às
atividades seletivas; mas, também, desde que praticados com o rigor
metodológico, acima indicado, tendo em vista a coleta de dados para a avaliação.
Para
aprofundamento das compreensões expostas neste texto, estudar os seguintes
livros do autor: Avaliação da
aprendizagem escolar: estudos e proposições, Cortez Editora, São Paulo, 22ª
edição, 2012; Avaliação da aprendizagem:
componente do ato pedagógico, Cortez Editora, São Paulo, 1ª edição, 2011; Sobre notas escolares: distorções e
possibilidades, Cortez Editora, São Paulo, 2014.
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