sábado, 4 de outubro de 2014

49 - Sobre os estados emocionais e a avaliação da aprendizagem

Texto publicado anteriormente no Terra Blog em 02 de maio de 2014
Cipriano Luckesi


No artigo anterior deste blog, mencionei dois cuidados básicos para a prática da avaliação da aprendizagem: o primeiro, com os estados emocionais do avaliador e, o segundo, com os requisitos metodológicos necessários. Pretendo, neste texto, dimensionar um pouco melhor a questão da interferência dos estados emocionais.

Todos temos uma biografia. Não chegamos ao mundo prontos, mas sim como um “feixe de potencialidades”. Ao longo do tempo de nossas vidas, vamos nos constituindo, seja pelo desenvolvimento biológico, seja pelo desenvolvimento psicológico, emocional. Nesse caso, olhando para o futuro de cada ser humano, que direção seguirá o desenvolvimento? Mas olhando para o passado, podemos nos perguntar: que direção seguiu nosso desenvolvimento pessoal?

A resposta a essa pergunta exigiria uma ampliação e aprofundamento sobre os múltiplos fatores intervenientes nesse processo, desde nossas heranças genéticas, nossas heranças socioculturais, nossas heranças das transmissões psíquicas transgeracionais, até nossa biografia pessoal, seja nas relações com nossos familiares, com o nosso entorno e com o mundo em geral, tendo presente todos os acontecimentos saudáveis, assim como com todos os acontecimentos traumáticos. Contudo, nesse pequeno artigo, trago sinalizações exclusivamente em relação à variável biografia pessoal.

Freud, em finais do século XIX e inícios do XX, afirmou que reações emocionais automáticas e intempestivas desproporcionais às circunstâncias do presente não são do presente, mas sim do passado.  As memórias inconscientes, nesse contexto, atuam de modo atemporal. Atuam no presente como se estivessem atuando no passado. Então, as marcas de uma experiência traumática, ocorrida no passado, atuam como se a experiência fosse se dar de novo no presente. E, então, para que a dor vivida não se repita, o inconsciente atua de modo imediato e intempestivo, como a dizer: “isso não vai acontecer de novo”.

Mais recentemente, com as possibilidades de investigação do cérebro por imagens, a partir dos anos 1980, neurologistas conseguiram identificar os segmentos cerebrais onde se sediam as memórias do medo, que são aquelas que tem a ver com traumas do passado e com o temor de que eles se deem novamente. Importa saber que uma memória traumática psicológica decorre de uma experiência impactante, em nossa vida pessoal, não metabolizada, isto é, que não pudera, devido nossa imaturidade desenvolvimental, ser compreendida à época da ocorrência e, por isso mesmo, não integrada à vida.

Onde essas memórias estão sediadas no cérebro e de onde atuam de forma automática e independente de nossas escolhas? Segundo a neurologia mais recente, em nossas amígdalas cerebrais, em número de duas, uma em cada hemisfério de nosso cérebro.

Ao primeiro sinal captado por nossos recursos de percepção de que alguma coisa que ocorreu no passado vai ocorrer de novo as amigdalas atuam intempestivamente, então, reagimos, na maior parte da vezes, de forma inadequada. Por vezes, também, reagimos adequadamente e nos salvando de circunstâncias negativas. As amígdalas são “surdas” para escutar avisos mais sensatos do raciocínio; agem por elas mesmas.

Uma digressão bibliográfica. Se o leitor estiver interessado em algum aprofundamento desses estudos, entre outros livros, vale a pena ler Inteligência emocional, da autoria do psicólogo e jornalista Daniel Coleman, Editora Objetiva, Rio de Janeiro; O poder da emoções, da autoria de Fritz Stemme, psicólogo e ex-professor da Universidade de Bremen, Alemanha, publicado pela Editora Cultrix, São Paulo. Vale ainda a pena ver o livro da autoria do neurologista Joseph LeDoux, O Cérebro emocional, publicado pela Editora Objetiva, Rio de Janeiro. No sitewww.curandocriancaferida.com.br tenho postado regularmente artigos abordando traumas psicológicos. Caso deseje, o leitor poderá acessar esses textos, que são ilustrativos da temática aqui discutida.

Tomando-se a compreensão, acima exposta, muitas vezes, nas relações interpessoais, próprias da heteroavaliação, como ocorre na sala de aulas, podemos perceber que determinadas reações nossas, de educadores, não respondem ao que está ocorrendo no presente, mas sim expressam reações, cujas fontes estão em nossas memórias de um passado remoto e inconsciente; todavia, com capacidade de atuar por si mesmas.

Recentemente ouvia o relato de uma professora do ensino superior a respeito do depoimento, em sala de aulas, de um dos seus estudantes. Como tinha duas professoras, do mesmo Departamento e atuando na mesma área, dizia o estudante: “São diferentes os modos de agir de vocês duas, ainda que atuem no mesmo Departamento e sobre os mesmos conteúdos. A professor X usa a avaliação para julgar, aprovar, reprovar, como também, para recriminar os estudantes. Por outro lado, a senhora usa a avaliação para nos orientar novamente naquilo que não aprendemos corretamente, mas necessitamos de aprender”.

São condutas completamente diferentes, ainda que a primeira seja considerada, no cotidiano escolar, como “natural”, seja por razões da biografia pessoal seja por razões histórico-sociais.
De fato, o modo de agir da professora X é o modo corriqueiro de agir, gerido pelo senso comum cotidiano de nossa sociedade e compatível com todos os traumas que nós educadores vivenciamos ao longo do tempo que fomos estudantes. Inconscientemente, repetimos o que ocorreu conosco.

E, certamente do ponto de vista pedagógico, nossas reações emocionais, quando ocorrem de modo automático e/ou intempestivo, não nos ajudam a exercer, com qualidade, nossa profissão, que é ensinar tendo como correspondente a efetiva aprendizagem dos educandos, também não ajudam os estudantes a aprender o que necessitam aprender. Nessas circunstâncias, por vezes, faltam-nos paciência suficiente para reensinar o que parece que deveriam ter aprendido com nossa primeira orientação.

Ensinar, sem que o estudante aprenda, não expressa o “ensinar”; ensino, sem aprendizagem, não é ensino. Coisa semelhança ocorre com o “vender”:  vender, sem que alguém compre, não executa o vender.

Então, enfim, nossa atividade profissional exige que estejamos sempre atentos às nossas reações emocionais. O que elas nos revelam? Estamos efetivamente atuando para que nossos educandos aprendam ou reagindo a partir de uma experiência negativa de nosso passado?


Responder a essa pergunta exige constante vigilância sobre nossos atos e reações emocionais na prática educativa em geral e na prática da avaliação da aprendizagem em específico. Contudo, importa sinalizar que, em todas as nossas relações no cotidiano de nossas vidas, as expressões emocionais operam de forma equivalente, seja em nosso ambiente familiar, seja em nossos espaços de trabalho, na rua, nos shoppings, na igreja, no trânsito… Afinal, em nossas relações.





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