Texto publicado anteriormente no Terra Blog em 02 de maio de 2014
Cipriano Luckesi
No artigo anterior deste blog, mencionei dois cuidados básicos para a
prática da avaliação da aprendizagem: o primeiro, com os estados emocionais do
avaliador e, o segundo, com os requisitos metodológicos necessários. Pretendo,
neste texto, dimensionar um pouco melhor a questão da interferência dos estados
emocionais.
Todos temos uma biografia. Não chegamos ao mundo prontos, mas sim como
um “feixe de potencialidades”. Ao longo do tempo de nossas vidas, vamos nos
constituindo, seja pelo desenvolvimento biológico, seja pelo desenvolvimento
psicológico, emocional. Nesse caso, olhando para o futuro de cada ser humano,
que direção seguirá o desenvolvimento? Mas olhando para o passado, podemos nos
perguntar: que direção seguiu nosso desenvolvimento pessoal?
A resposta a essa pergunta exigiria uma ampliação e aprofundamento sobre
os múltiplos fatores intervenientes nesse processo, desde nossas heranças
genéticas, nossas heranças socioculturais, nossas heranças das transmissões
psíquicas transgeracionais, até nossa biografia pessoal, seja nas relações com
nossos familiares, com o nosso entorno e com o mundo em geral, tendo presente
todos os acontecimentos saudáveis, assim como com todos os acontecimentos traumáticos.
Contudo, nesse pequeno artigo, trago sinalizações exclusivamente em relação à
variável biografia pessoal.
Freud, em finais do século XIX e inícios do XX, afirmou que reações
emocionais automáticas e intempestivas desproporcionais às circunstâncias do
presente não são do presente, mas sim do passado. As memórias
inconscientes, nesse contexto, atuam de modo atemporal. Atuam no presente como
se estivessem atuando no passado. Então, as marcas de uma experiência
traumática, ocorrida no passado, atuam como se a experiência fosse se dar de
novo no presente. E, então, para que a dor vivida não se repita, o inconsciente
atua de modo imediato e intempestivo, como a dizer: “isso não vai acontecer de
novo”.
Mais recentemente, com as possibilidades de investigação do cérebro por
imagens, a partir dos anos 1980, neurologistas conseguiram identificar os
segmentos cerebrais onde se sediam as memórias do medo, que são aquelas que tem
a ver com traumas do passado e com o temor de que eles se deem novamente.
Importa saber que uma memória traumática psicológica decorre de uma experiência
impactante, em nossa vida pessoal, não metabolizada, isto é, que não pudera,
devido nossa imaturidade desenvolvimental, ser compreendida à época da
ocorrência e, por isso mesmo, não integrada à vida.
Onde essas memórias estão sediadas no cérebro e de onde atuam de forma
automática e independente de nossas escolhas? Segundo a neurologia mais
recente, em nossas amígdalas cerebrais, em número de duas, uma em cada
hemisfério de nosso cérebro.
Ao primeiro sinal captado por nossos recursos de percepção de que alguma
coisa que ocorreu no passado vai ocorrer de novo as amigdalas atuam
intempestivamente, então, reagimos, na maior parte da vezes, de forma
inadequada. Por vezes, também, reagimos adequadamente e nos salvando de
circunstâncias negativas. As amígdalas são “surdas” para escutar avisos mais
sensatos do raciocínio; agem por elas mesmas.
Uma digressão bibliográfica. Se o leitor estiver interessado em algum
aprofundamento desses estudos, entre outros livros, vale a pena ler Inteligência
emocional, da autoria do psicólogo e jornalista Daniel Coleman, Editora
Objetiva, Rio de Janeiro; O poder da emoções, da autoria de Fritz
Stemme, psicólogo e ex-professor da Universidade de Bremen, Alemanha, publicado
pela Editora Cultrix, São Paulo. Vale ainda a pena ver o livro da autoria do
neurologista Joseph LeDoux, O Cérebro emocional, publicado pela
Editora Objetiva, Rio de Janeiro. No sitewww.curandocriancaferida.com.br tenho
postado regularmente artigos abordando traumas psicológicos. Caso deseje, o
leitor poderá acessar esses textos, que são ilustrativos da temática aqui
discutida.
Tomando-se a compreensão, acima exposta, muitas vezes, nas relações
interpessoais, próprias da heteroavaliação, como ocorre na sala de aulas,
podemos perceber que determinadas reações nossas, de educadores, não respondem
ao que está ocorrendo no presente, mas sim expressam reações, cujas fontes
estão em nossas memórias de um passado remoto e inconsciente; todavia, com capacidade
de atuar por si mesmas.
Recentemente ouvia o relato de uma professora do ensino superior a
respeito do depoimento, em sala de aulas, de um dos seus estudantes. Como tinha
duas professoras, do mesmo Departamento e atuando na mesma área, dizia o
estudante: “São diferentes os modos de agir de vocês duas, ainda que atuem no
mesmo Departamento e sobre os mesmos conteúdos. A professor X usa a avaliação
para julgar, aprovar, reprovar, como também, para recriminar os estudantes. Por
outro lado, a senhora usa a avaliação para nos orientar novamente naquilo que
não aprendemos corretamente, mas necessitamos de aprender”.
São condutas completamente diferentes, ainda que a primeira seja
considerada, no cotidiano escolar, como “natural”, seja por razões da biografia
pessoal seja por razões histórico-sociais.
De fato, o modo de agir da professora X é o modo corriqueiro de agir,
gerido pelo senso comum cotidiano de nossa sociedade e compatível com todos os
traumas que nós educadores vivenciamos ao longo do tempo que fomos estudantes.
Inconscientemente, repetimos o que ocorreu conosco.
E, certamente do ponto de vista pedagógico, nossas reações emocionais,
quando ocorrem de modo automático e/ou intempestivo, não nos ajudam a exercer,
com qualidade, nossa profissão, que é ensinar tendo como correspondente a
efetiva aprendizagem dos educandos, também não ajudam os estudantes a aprender
o que necessitam aprender. Nessas circunstâncias, por vezes, faltam-nos
paciência suficiente para reensinar o que parece que deveriam ter aprendido com
nossa primeira orientação.
Ensinar, sem que o estudante aprenda, não expressa o “ensinar”; ensino,
sem aprendizagem, não é ensino. Coisa semelhança ocorre com o “vender”:
vender, sem que alguém compre, não executa o vender.
Então, enfim, nossa atividade profissional exige que estejamos sempre
atentos às nossas reações emocionais. O que elas nos revelam? Estamos
efetivamente atuando para que nossos educandos aprendam ou reagindo a partir de
uma experiência negativa de nosso passado?
Responder a essa pergunta exige constante vigilância sobre nossos atos e
reações emocionais na prática educativa em geral e na prática da avaliação da
aprendizagem em específico. Contudo, importa sinalizar que, em todas as nossas
relações no cotidiano de nossas vidas, as expressões emocionais operam de forma
equivalente, seja em nosso ambiente familiar, seja em nossos espaços de
trabalho, na rua, nos shoppings, na igreja, no trânsito… Afinal, em nossas
relações.
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