domingo, 5 de outubro de 2014

55 - Avaliação da aprendizagem e o engano do uso do argumento da subjetividade


Texto publicado anteriormente no Terra Blog, em 02 de junho de 2014
Cipriano Luckesi





Tendo estado em diversas partes do país participando de eventos educacionais como conferencista, por muitas vezes, recebi perguntas que abordavam a questão de “como praticar avaliação padronizada diante do fato de que os estudantes são tantos etão variados em sua subjetividade?”

Importa observar que subjetividade tem a ver com a singularidade de cada um, o que implica em individualidade (aquilo que é indiviso —, isto é, não dividido nem divisível —, que caracteriza exclusivamente cada um em sua singularidade); e que nessa individualidade, própria de cada ser humano, estão presentes múltiplos aspectos, tais como o fato de cada um ser único, o fato da herança biológica que recebeu, dos condicionantes parentais, dos condicionantes familiares e socioculturais, assim como do conjunto de experiências biográficas pelas quais transitou, tenham sido elas saudáveis ou traumáticas (todas essas experiências tem seu papel definindo a singularidade de cada um).

Essa individualidade possibilita que cada um aja em conformidade com ela. Desse modo, duas pessoas, (01) realizando a mesma tarefa, o mesmo algoritmo da ação, cumprem o mesmo objetivo, isto é, a produzem o mesmo resultado, porém, (02) com nuances próprias de cada singularidade.

Uma pessoa pode realizar e realiza uma determinada tarefa e eu também posso realizar e realizo a mesma tarefa; ambos chegamos a um produto que responde, de modo satisfatório, à necessidade para a qual fora elaborado, havendo, contudo, nuances no produto final decorrentes a individualidade de cada um.

Por exemplo, dois cirurgiões cardíacos, plenamente competentes, procedem adequadamente suas cirurgias, nada ficando a desejar nem em uma nem em outra; todavia, cada uma delas trará a marca da individualidade de cada um deles. A tarefa é objetiva e sempre igual (= proceder uma cirurgia cardíaca satisfatoriamente; sem essa qualidade, o paciente falece); mas, cada um dos dois cirurgiões, atuando com satisfatoriedade, tem seu modo individual de proceder essa mesma tarefa (= modo de agir de cada cirurgião onde se fazem presentes suas características psicológicas). A tarefa é objetiva, mas, com o “it” individual, que é a marca subjetiva de cada um.

Em síntese, importa perceber que a tarefa necessita ser cumprida, objetivamente, de modo satisfatório; e, ao mesmo tempo, compreender que cada um, em sua singularidade (= subjetividade), imprimirá tons específicos que aparecerão nos resultados da tarefa cumprida.

Não se pode e não se deve confundir qualidade da tarefa a ser realizada com “it” pessoal ao realiza-la, sob pena de desejarmos que todos sejam iguais, o que seria uma tragédia.

Tomando como base atrizes brasileiras, uma mesma cena teatral poderia ser desempenhada por Fernanda Montenegro como por Marília Pera. Objetivamente, a mesma cena satisfatoriamente desempenhada; porém, com características bem singulares, próprias da expressividade de cada uma dessas atrizes.

Compreendida essa distinção, o passo subsequente é aplicá-la à prática da avaliação da aprendizagem. Na escola, seja ela de que nível for — fundamental, médio, superior —, o que o educador/professor ensina, pautado no currículo estabelecido, é objetivo. A configuração dos conteúdos, o algoritmo das atividades necessárias relativas ao ensino e à aprendizagem dos conteúdos, assim como as habilidades necessárias para desempenhar os respectivos conteúdos, são objetivos. Subjetivos são os modos singulares de ser do educador/professor, assim como do educando. O que será necessário é que o educador/professor ensine o que tem que ensinar e o educando aprenda o que tem que aprender.

No currículo escolar regular, não está contido o conteúdo: “ensinar o ‘it’ pessoal” com o qual cada estudante deverá desempenhar sua aprendizagem. Caso esse fosse o conteúdo curricular, chegaríamos a construir o “admirável mundo novo” de Aldous Huxley, no qual não haveriam singularidades, mas, sim, cada ser humano sendo um robozinho.

No currículo escolar, estão, certamente, definidos os conteúdos a serem ensinados e aprendidos, tendo presente o “it pessoal”, a singularidade de cada educando; contudo, nem é o “it” pessoal nem a singularidade de cada um que vão ser ensinados. Todos deverão e necessitarão aprender os conteúdos ensinados, mediados por suas próprias singularidades.

Um exemplo poderá ajudar: um professor nas séries iniciais do ensino fundamental, ensina adição, como conteúdo necessário a ser aprendido (= raciocínio aditivo, fórmula da adição, propriedades da adição, solução de problemas simples e solução de problemas complexos em adição). Cada estudante necessitará aprender todos esses recursos mentais e práticos, a fim de que se possa afirmar que “ele aprendeu adição”. E, cada um dos nossos trinta (ou quarenta, ou qualquer outro número) estudantes aprenderão esse conteúdo com suas singularidades. Todos deverão aprender o mesmo conteúdo, com os recursos singulares e subjetivos de cada um.

Na prática avaliativa da aprendizagem desse conteúdo (aqui, no caso, a adição em matemática), o professor deverá ter presente como critério a aprendizagem do conteúdo e não a singularidade subjetiva de cada estudante. O professor ensinou o conteúdo “adição” e não a singularidade subjetiva de cada estudante.

Então, o que deverá ter presente na prática avaliativa nessa circunstância? O que foi ensinado, obviamente, e não outras qualidades possíveis dos educandos.

Muitas vezes, na prática docente, caímos nessa falácia de argumentos dos “argumentos da subjetividade”, afirmando ser impossível praticar adequadamente a avaliação em função das múltiplas e variadas singularidades dos educandos, esquecendo-nos que o conteúdo a ser ensinado e efetivamente ensinado não tem a propalada múltipla singularidade.

Nesse contexto, vale a pena lembrar que a falácia do argumento da subjetividade se entende, ainda, um pouco mais na prática escolar.  Se diz que “não se pode avaliar os estudantes de forma igual, devido cada um deles possuir uma singularidade subjetiva”. Uma oposição indevida entre singular e geral.
A consequência dessa falácia argumentativa é de que não há como praticar a avalição com adequação, desde que estaríamos tratando “estudantes desiguais como se fossem iguais”. De fato, tendo presente a singularidade de cada um, todos seriam desiguais, pois que cada um é singular subjetivamente em relação a todos os outros.

Todavia, importa observarmos que o que necessitamos avaliar é se o educando aprendeu o que ensinamos. Nada mais que isso. Afinal, não estamos, na avaliação da aprendizagem, testando a personalidade de nenhum educando; estamos simplesmente desejando ter ciência “se ele aprendeu o que deveria ter aprendido”, tendo por base nosso investimento em que ele aprendesse o que ensinamos (= aquilo que verdadeiramenteensinamos, que é diferente de dar aulaensinar é muito mais exigente do que dar aulas; se se ensina, o educando aprende; se se dá aulas, pode aprender ou não).

Então, vamos ter presente que os educandos, dentro de uma turma, do ponto de vista do conteúdo ensinado, são desiguais ao iniciar a atividade de ensinar determinado conteúdo; contudo, ao final dessa atividade, caso ela tenha sido suficientemente cuidadosa e eficiente, eles terão desempenho equivalente.
Essa equivalência no desempenho aprendido depende muitíssimo mias do investimento eficiente no ensino que das singularidades subjetivas dos educandos.

Alguém poderá argumentar contra essa compreensão, trazendo à baila a situação dos “portadores de necessidades especiais”. Nessa circunstância, estaremos tratando de outra fenomenologia, bem diferente daquela vivida pelos estudantes usuais em nossas escolas. Estes são os denominados “normais”, com um organismo dentro dos parâmetros médios de saúde, uma personalidade sociável e com uma inteligência média, como a maioria de todos os seres humanos.

Na prática educativa escolar, chegaremos à eficiência qualitativamente significativa à medida que entendamos a falácia de sucessivos argumentos que não se sustentam na prática cotidiana e passemos a efetivamente investir em atos e condutas que subsidiem os educandos em sua aprendizagem efetiva. Importa abrir mão dos argumentos externos ao próprio ensino.

Fui multirepetente em minha história de vida escolar. Deixei de sê-lo devido um professor, nos meus catorze anos de idade, ter dito a mim e a outros colegas que se encontravam na mesma situação: “Se vocês forem bem ensinados, aprenderão. Vou cuidar de vocês.” Nunca mais fui repetente. As desigualdades iniciais desapareceram com um efetivo e eficiente ensino.





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Um comentário:

  1. Que texto! Obrigada por sua explanação, a educação precisa ter objetivos claros e competências a desenvolver, sem muitas desculpas...

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