domingo, 5 de outubro de 2014

57 - Avaliação da aprendizagem: compreensão teórica e investimento


Texto publicado anteriormente no Terra Blog em 15 de julho de 2014
Cipriano Luckesi


Foi com Ralph Tyler, um jovem educador norte-americano (nascido em 1902), em torno de 1930, que iniciamos historicamente a falar em “avaliação da aprendizagem” ao invés de exames escolares. No Brasil, isso ocorreu em torno dos finais dos anos 1960 e inícios dos anos 1970, com a chegada ao país do movimento pela eficiência no ensino e na aprendizagem, usualmente denominado de tecnologia educacional.

A Lei 5.692/71, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sob número 4.024, de 1961, já não utiliza mais a expressão exames escolares, mas sim “aferição do aproveitamento escolar”. Iniciava-se, dessa forma, o movimento pró avaliação na prática educativa.

Contudo, os mais de oitenta anos no movimento mundial e os mais de quarenta anos no Brasil, que nos distancia das datas acima indicadas, ainda não deram conta de modificar nossos hábitos no que se refere ao acompanhamento e construção da aprendizagem de nossos educandos.

Em meados dos anos 1980, o professor José Carlos Libâneo, em sua dissertação para obtenção do título de Mestre em Educação pela PUC de São Paulo, intitulada A prática pedagógica de professores da escola pública, PUC/SP, 1984, a partir de depoimentos de educadores de escolas públicas da cidade de São Paulo, fez um estudo sobre suas concepções e suas práticas no cotidiano escolar. Através desses depoimentos classificou os educadores em tradicionaisrenovados e progressistas. E, então, com base nos dados coletados, afirma que os educadores que assumiram posturas progressistas na educação, modificaram sua concepção e seu exercício metodológico no ensino, porém, no que se refere à avaliação da aprendizagem, permaneceramtradicionais.

O termo tradicional quer dizer que ainda continuamos a praticar os exames escolares sistematizados e resistematizados ao longo da idade moderna no ocidente, ou seja, no período que vai do século XVI ao século XX, tomando-se como referência a data da referida dissertação (1984), mas, ao século XXI, no que se refere a nós, hoje, pois que ainda continuamos a agir em nossa prática escolar vinculados ao modelo dos exames escolares.

Num texto que publiquei, em fevereiro do ano 2000, na Pateo: revista pedagógica, Ano 4, no. 12, Editora Artes Médicas, Porto Alegre, eu afirmava que havíamos modificado a denominação, desde que havíamos adotado o termo avaliação em substituição à expressão exames escolares, mas não havíamos modificado a prática. E… ainda continuamos nesse mesmo patamar. Usamos o termo avaliação, porém nossas crenças inconscientes e nossas práticas escolares cotidianas — em todos os níveis de ensino, do fundamental ao superior — continuam pautadas pelos exames escolares.
Então, estamos necessitando que, em primeiro lugar, as novas compreensões sobre avaliação da aprendizagem — assim como sobre avaliação em educação, tomada como expressão mais geral —, com as quais estamos nos confrontando no dia a dia, efetivamente se integrem na totalidade do nosso ser, tanto cognitiva quanto emocionalmente; tanto no uso individual, quanto institucional e coletivo.
A integração de novos conceitos — de forma exclusivamente lógica, racional e abstrata — não garante, ao mesmo tempo, a integração emocional, ou seja, no coração, no efetivo desejo de agir de uma forma nova, e, especialmente, sua efetiva tradução na prática do dia a dia.
Quando, psicologicamente, integramos um novo conceito, ele passa a dar forma a uma nova prática. A partir de um olhar genérico, isto é, sem ter em conta condutas individuais diferenciadas, que ocorrem entre os educadores tomados individualmente, podemos continuar a afirmar simbolicamente que “mudamos o nome, mas não mudamos a prática”, pois que os exames escolares continuam “firme s e fortes” no cotidiano de nossas escolas, ainda que tenhamos modificado em muito nossas compreensões sobre o ato de avaliar a aprendizagem de nossos educandos.
Em síntese, temos estado marcados ao longo da modernidade pelo padrão dos exames, daí a dificuldade em transitarmos para a prática cotidiana da avaliação em nossas escolas.
Para abrirmos mão do padrão dos exames escolares, necessitamos reconhecer, desejar e investir na ultrapassagem de três barreiras:
(01) a barreira histórica dos quinhentos anos de exames escolares, que constituíram essa conduta como um monolito, gerando o “senso comum que guia a prática dos exames escolares”, segundo o qual agimos automaticamente. Na linguagem de Rupert Sheldrake, “um campo mórfico”, ou seja, um campo organizado de energia, que atua sobre cada um de nós. Desfazer esse padrão de conduta exige investimentos conscientes individuais e coletivos. Para atuar pedagogicamente com avaliação, necessitamos investir conscientemente no modelo de escola e no modelo de sociedade onde a avaliação tenha seu lugar natural. Uma escola efetivamente construtiva, onde se invista para que todos os educandos aprendam o que necessitam de aprender;
(02) a barreira do modelo de sociedade excludente. Os exames escolares reproduzem o modelo de sociedade no seio da qual foram sistematizados.  Os exames escolares que praticamos se sistematizaram junto com a emergência da sociedade burguesa moderna, estruturada em classes sociais definidas e com práticas — usualmente ocultas, mas eficientes — de exclusão social. Os exames praticam a exclusão social na educação escolar: alguns ficam, outros tantos saem; alguns são aprovados, muitos reprovados. Os excluídos na escola também são excluídos socialmente. A avaliação, por outro lado, é inclusiva: todos podem e devem aprender o necessário. É democrática e, em termos sociais, democratizante;
(03) a barreira dos nossos traumas psicológicos pessoais. A biografia de cada um de nós foi — e está — marcada por inúmeros momentos traumáticos decorrentes de muitos outros acontecimentos, mas também dos exames escolares aos quais fomos submetidos, ao longo de nossa formação nos diversos níveis de escolaridade. Agora — educadores — replicamos o que, de modo rotineiro e inconsciente, aconteceu conosco. Fomos examinados, agora examinamos; fomos submetidos às ameaças dos exames, agora ameaçamos; fomos castigados pelos exames, agora castigamos; fomos excluídos, agora excluímos. Necessitamos de um novo modo de conceber esse algoritmo, ou seja: fomos examinadas, passamos a avaliar; fomos excluídos, assumimos incluir nossos educandos; fomos desqualificados, assumimos o cuidado de não desqualificar ninguém. O caminho é acolher os educandos e orientá-los, orientá-los e orientá-los… sempre. Incansavelmente! Nuca excluí-los. Trabalhar com avaliação é um convite a ultrapassar e integrar nossos traumas passados, inaugurando uma nova forma de ser.
Então, o que aprendemos com o entendimento, acima exposto? Que não basta mudar conceitos de modo abstrato. Importa integrá-los na prática cotidiana. Teoria e prática necessitam andar juntas. Teoria sem prática é cabeça sem corpo; e, prática sem teoria é corpo sem cabeça. Frankenstein! A única possibilidade saudável é cabeça com corpo, ou seja, teoria praticada no cotidiano, assim como prática cotidiana iluminada pela teoria.
Para tanto, importa estarmos cientes de que agirmos determinados por vários fatores que atuam como “pano de fundo” de nosso modo de agir. Nem sempre estamos conscientes disso. Não vale a pena lamentar que assim seja, o que importa é começar amanhã, ou hoje, a fazer diferente, o que quer dizer em conformidade com um modo construtivo de ser e agir.
Então, nossa tarefa, no presente momento, na vida escolar, é investir numa prática pedagógica consistente (planejar, executar e avaliar), onde a avaliação seja a parceira do sucesso; muito diferente dela ser um recurso de controle e disciplinamento — quando não de castigo — dos nossos educandos.
É a prática pedagógica que é bem sucedida, não a avaliação em si e por si. A avaliação, como investigação da qualidade da realidade (diagnóstico), simplesmente é a parceira que nos revela a qualidade dos resultados de nossa ação. Ela simplesmente nos diz: “Sua ação foi bem sucedida” Ou, também, nos diz: “Sua ação ainda não foi bem sucedida. Deseja chegar lá? Invista mais”.
Se a avaliação revela que os resultados são positivos, indicando que atingimos o que desejávamos, ótimo; se negativa, ou seja, que não atingimos ainda os resultados almejados, há que se investir nela até chegarmos aonde planejamos chegar.
Investimento é condição de sucesso. Sucesso exige planejamento (desejo claro do que se quer), execução disciplinada, avaliação rigorosa e consistente e, se necessário, em decorrência da revelação exercida pela avaliação, novo investimento e… mais novo investimento. Toda ação pode ser bem sucedida, caso seja cuidada.
No cotidiano, não ocorrem milagres, mas escolhas e investimentos na busca do sucesso, definido pelo desejo.
No que se refere à avaliação da aprendizagem, todos nós que atuamos em educação, seja no sistema em geral, seja na sala de aula, necessitamos ultrapassar a compreensão abstrata, exclusivamente conceitual, do que seja avaliação, passando a praticá-la em nosso cotidiano individual, como no cotidiano de nossas instituições.
Sempre, haverá necessidade que o líder tome efetivamente o seu lugar — lugar daquele que dá o tom à ação, daquele que serve à ação, não lugar daquele que manda —, seja na instituição (direção), seja no exercício da sala de aula (educador na sala de aula). Juntos, líderes e liderados farão belas coisas.

Não podemos mais esperar anos e anos — já se passaram muitos, desde que iniciamos a falar de avaliação — para transitar do ato de examinar para o ato de avaliar. Isto é, transitar do “ato de dar aulas” (semeador que semeia sementes por aí…) para o “ato de cuidar” dos educandos para que efetivamente aprendam (jardineiro que cuida diuturnamente de suas plantinhas…).








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