Texto publicado anteriormente no Terra Blog em 15 de julho de 2014
Cipriano Luckesi
Foi com Ralph Tyler, um jovem educador norte-americano (nascido em 1902), em torno de 1930, que iniciamos historicamente a falar em “avaliação da aprendizagem” ao invés de exames escolares. No Brasil, isso ocorreu em torno dos finais dos anos 1960 e inícios dos anos 1970, com a chegada ao país do movimento pela eficiência no ensino e na aprendizagem, usualmente denominado de tecnologia educacional.
A Lei 5.692/71, que alterou a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sob número 4.024, de 1961, já não
utiliza mais a expressão exames escolares, mas sim “aferição do aproveitamento
escolar”. Iniciava-se, dessa forma, o movimento pró avaliação na prática
educativa.
Contudo, os mais de oitenta anos no
movimento mundial e os mais de quarenta anos no Brasil, que nos distancia das
datas acima indicadas, ainda não deram conta de modificar nossos hábitos no que
se refere ao acompanhamento e construção da aprendizagem de nossos educandos.
Em meados dos anos 1980, o professor
José Carlos Libâneo, em sua dissertação para obtenção do título de Mestre em
Educação pela PUC de São Paulo, intitulada A prática pedagógica de
professores da escola pública, PUC/SP, 1984, a partir de depoimentos de
educadores de escolas públicas da cidade de São Paulo, fez um estudo sobre suas
concepções e suas práticas no cotidiano escolar. Através desses depoimentos
classificou os educadores em tradicionais, renovados e progressistas.
E, então, com base nos dados coletados, afirma que os educadores que assumiram
posturas progressistas na educação, modificaram sua concepção e seu exercício
metodológico no ensino, porém, no que se refere à avaliação da aprendizagem,
permaneceramtradicionais.
O termo tradicional quer
dizer que ainda continuamos a praticar os exames escolares sistematizados e
resistematizados ao longo da idade moderna no ocidente, ou seja, no período que
vai do século XVI ao século XX, tomando-se como referência a data da referida
dissertação (1984), mas, ao século XXI, no que se refere a nós, hoje, pois que
ainda continuamos a agir em nossa prática escolar vinculados ao modelo dos
exames escolares.
Num texto que publiquei, em fevereiro
do ano 2000, na Pateo: revista pedagógica, Ano 4, no. 12, Editora
Artes Médicas, Porto Alegre, eu afirmava que havíamos modificado a denominação,
desde que havíamos adotado o termo avaliação em substituição à
expressão exames escolares, mas não havíamos modificado a prática.
E… ainda continuamos nesse mesmo patamar. Usamos o termo avaliação,
porém nossas crenças inconscientes e nossas práticas escolares cotidianas — em
todos os níveis de ensino, do fundamental ao superior — continuam pautadas
pelos exames escolares.
Então, estamos necessitando que, em
primeiro lugar, as novas compreensões sobre avaliação da aprendizagem — assim
como sobre avaliação em educação, tomada como expressão mais geral —, com as
quais estamos nos confrontando no dia a dia, efetivamente se integrem na
totalidade do nosso ser, tanto cognitiva quanto emocionalmente; tanto no uso
individual, quanto institucional e coletivo.
A integração de novos conceitos — de
forma exclusivamente lógica, racional e abstrata — não garante, ao mesmo tempo,
a integração emocional, ou seja, no coração, no efetivo desejo de agir de uma
forma nova, e, especialmente, sua efetiva tradução na prática do dia a dia.
Quando, psicologicamente, integramos um
novo conceito, ele passa a dar forma a uma nova prática. A partir de um olhar
genérico, isto é, sem ter em conta condutas individuais diferenciadas, que
ocorrem entre os educadores tomados individualmente, podemos continuar a
afirmar simbolicamente que “mudamos o nome, mas não mudamos a prática”, pois
que os exames escolares continuam “firme s e fortes” no cotidiano de nossas
escolas, ainda que tenhamos modificado em muito nossas compreensões sobre o ato
de avaliar a aprendizagem de nossos educandos.
Em síntese, temos estado marcados ao
longo da modernidade pelo padrão dos exames, daí a dificuldade em transitarmos
para a prática cotidiana da avaliação em nossas escolas.
Para abrirmos mão do padrão dos exames
escolares, necessitamos reconhecer, desejar e investir na ultrapassagem de três
barreiras:
(01) a barreira histórica dos
quinhentos anos de exames escolares, que constituíram essa conduta como um
monolito, gerando o “senso comum que guia a prática dos exames escolares”,
segundo o qual agimos automaticamente. Na linguagem de Rupert Sheldrake, “um
campo mórfico”, ou seja, um campo organizado de energia, que atua sobre cada um
de nós. Desfazer esse padrão de conduta exige investimentos conscientes
individuais e coletivos. Para atuar pedagogicamente com avaliação, necessitamos
investir conscientemente no modelo de escola e no modelo de sociedade onde a
avaliação tenha seu lugar natural. Uma escola efetivamente construtiva, onde se
invista para que todos os educandos aprendam o que
necessitam de aprender;
(02) a barreira do modelo de sociedade
excludente. Os exames escolares reproduzem o modelo de sociedade no seio da
qual foram sistematizados. Os exames escolares que praticamos se
sistematizaram junto com a emergência da sociedade burguesa moderna,
estruturada em classes sociais definidas e com práticas — usualmente ocultas,
mas eficientes — de exclusão social. Os exames praticam a exclusão social na
educação escolar: alguns ficam, outros tantos saem; alguns são aprovados,
muitos reprovados. Os excluídos na escola também são excluídos socialmente. A avaliação,
por outro lado, é inclusiva: todos podem e devem aprender o necessário. É
democrática e, em termos sociais, democratizante;
(03) a barreira dos nossos traumas
psicológicos pessoais. A biografia de cada um de nós foi — e está — marcada por
inúmeros momentos traumáticos decorrentes de muitos outros acontecimentos, mas
também dos exames escolares aos quais fomos submetidos, ao longo de nossa
formação nos diversos níveis de escolaridade. Agora — educadores — replicamos o
que, de modo rotineiro e inconsciente, aconteceu conosco. Fomos examinados,
agora examinamos; fomos submetidos às ameaças dos exames, agora ameaçamos;
fomos castigados pelos exames, agora castigamos; fomos excluídos, agora
excluímos. Necessitamos de um novo modo de conceber esse algoritmo, ou seja:
fomos examinadas, passamos a avaliar; fomos excluídos, assumimos incluir nossos
educandos; fomos desqualificados, assumimos o cuidado de não desqualificar
ninguém. O caminho é acolher os educandos e orientá-los, orientá-los e
orientá-los… sempre. Incansavelmente! Nuca excluí-los. Trabalhar com avaliação
é um convite a ultrapassar e integrar nossos traumas passados, inaugurando uma
nova forma de ser.
Então, o que aprendemos com o
entendimento, acima exposto? Que não basta mudar conceitos de modo abstrato.
Importa integrá-los na prática cotidiana. Teoria e prática necessitam andar
juntas. Teoria sem prática é cabeça sem corpo; e, prática sem teoria é corpo
sem cabeça. Frankenstein! A única possibilidade saudável é cabeça com
corpo, ou seja, teoria praticada no cotidiano, assim como prática cotidiana
iluminada pela teoria.
Para tanto, importa estarmos cientes de
que agirmos determinados por vários fatores que atuam como “pano de fundo” de
nosso modo de agir. Nem sempre estamos conscientes disso. Não vale a pena
lamentar que assim seja, o que importa é começar amanhã, ou hoje, a fazer
diferente, o que quer dizer em conformidade com um modo construtivo de ser e
agir.
Então, nossa tarefa, no presente
momento, na vida escolar, é investir numa prática pedagógica consistente
(planejar, executar e avaliar), onde a avaliação seja a parceira do sucesso;
muito diferente dela ser um recurso de controle e disciplinamento — quando não
de castigo — dos nossos educandos.
É a prática pedagógica que é bem
sucedida, não a avaliação em si e por si. A avaliação, como investigação da
qualidade da realidade (diagnóstico), simplesmente é a parceira que nos revela
a qualidade dos resultados de nossa ação. Ela simplesmente nos diz: “Sua ação
foi bem sucedida” Ou, também, nos diz: “Sua ação ainda não foi bem sucedida.
Deseja chegar lá? Invista mais”.
Se a avaliação revela que os resultados
são positivos, indicando que atingimos o que desejávamos, ótimo; se negativa,
ou seja, que não atingimos ainda os resultados almejados, há que se investir
nela até chegarmos aonde planejamos chegar.
Investimento é condição de sucesso.
Sucesso exige planejamento (desejo claro do que se quer), execução
disciplinada, avaliação rigorosa e consistente e, se necessário, em decorrência
da revelação exercida pela avaliação, novo investimento e… mais novo
investimento. Toda ação pode ser bem sucedida, caso seja cuidada.
No cotidiano, não ocorrem milagres, mas
escolhas e investimentos na busca do sucesso, definido pelo desejo.
No que se refere à avaliação da
aprendizagem, todos nós que atuamos em educação, seja no sistema em geral, seja
na sala de aula, necessitamos ultrapassar a compreensão abstrata,
exclusivamente conceitual, do que seja avaliação, passando a praticá-la em
nosso cotidiano individual, como no cotidiano de nossas instituições.
Sempre, haverá necessidade que o líder
tome efetivamente o seu lugar — lugar daquele que dá o tom à ação, daquele que
serve à ação, não lugar daquele que manda —, seja na instituição (direção),
seja no exercício da sala de aula (educador na sala de aula). Juntos, líderes e
liderados farão belas coisas.
Não podemos mais esperar anos e anos —
já se passaram muitos, desde que iniciamos a falar de avaliação — para
transitar do ato de examinar para o ato de avaliar. Isto é, transitar do “ato
de dar aulas” (semeador que semeia sementes por aí…) para o “ato de cuidar” dos
educandos para que efetivamente aprendam (jardineiro que cuida diuturnamente de
suas plantinhas…).
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