quinta-feira, 2 de outubro de 2014

39 - Avaliação de larga escala e currículo escolar nacional

Texto publicado anteriormente no Terra Blog, em Salvador, 25 de maio de 2013.
 Cipriano Luckesi


Aqui e acolá, em minhas andanças pelo país, recebo uma pergunta sobre as avaliações de larga escala praticadas em nosso meio, cujo objeto de investigação é o sistema nacional de ensino. Usualmente, as perguntas levantam dúvidas sobre a qualidade dos instrumentos de coleta de dados, tendo em vista essas práticas avaliativas --- Prova Brasil, SAEB, ENEM, ENADE, IDEB. Certamente que um instrumento de coleta de dados pode conter algum limite e, sendo identificado, importa superá-lo. Todavia, tem me tocado, nessas ocasiões, a insistência em afirmar que a prática da avaliação de larga escala não é uma boa coisa e que apresenta desvios em relação ao que é ensinado na escola e o desempenho que é solicitado nos instrumentos.

Desejo fazer duas observações, a partir das perguntas que frequentemente recebo.

A primeira delas tem a ver com o fato de que, devido as práticas avaliativas de larga abrangerem fenômenos de escala nacional --- o ensino em escala nacional em seus diversos níveis ---, os instrumentos de coleta de dados sobre o desempenho dos estudantes estarem compostos por conteúdos de ensino-aprendizagem relativos ao currículo escolar no seu nível mais abrangente, o nacional, isto é, esses instrumentos não tem como seu objetivo contemplar as diversidades regionais e, menos ainda, as locais. Através desses instrumentos, os dados são coletados sobre o país, como um todo. Fato que implica que especificidades regionais e locais curriculares não são levadas em conta. 

Esses instrumentos estão constituídos através de recursos metodológicos e técnicos adequados a uma investigação de caráter nacional, que, por si, opera em todas as regiões do país, levando-se em conta aquilo que torna o país homogêneo e não aquilo que diferencia cada região ou localidade.

Pergunta-se: Isso é viável? A resposta é sim, devido ao fato de que o ensino no país tem um currículo que contém (01) conteúdos nacionais (certamente, os universais da ciência e das diversas áreas de conhecimento), (02) conteúdos da cultura regional e (03) conteúdos da cultura local. Os instrumentos de coleta de dados de larga escala --- que cobrem o país como um todo ---, por si, não tem como contemplar as singularidades regionais e locais. 

Para se levar em conta essas singularidades, teríamos que que inverter o processo, ou seja, optaríamos por uma avaliação do sistema local de ensino, com conotações regionais e, possivelmente, nacionais. Em primeiro lugar, estaria o foco no local, com um crescendo para os outros níveis socioculturais mais abrangentes. O que ocorre é que o avaliador (do sistema nacional de ensino) optou por tomar como foco prioritário o aspecto nacional --- o que, pessoalmente, considero adequado ---, daí, então, os instrumentos não contemplarem  as diferenças socioculturais regionais e locais.  

Essa opção significa que os conteúdos regionais e locais não são importantes? Não, de forma alguma. Essa opção implica simplesmente que é inviável, num único instrumento, contemplar o nacional, o regional e o local em termos de conteúdos escolares, tenho em vista abordar a aprendizagem efetiva dos educandos. Como argumento, seria fácil dizer que o IBGE aplica questionários com essa variabilidade de conteúdos. Importa observar que os questionários sociais, econômicos e culturais solicitam “informações” censitárias e não desempenhos, o que torna esses instrumentos de coleta de dados muito diferentes dos testes da aprendizagem, que solicitam desempenhos.  

Então, os primeiros podem, e certamente devem, ser abrangentes sob todas as óticas, abordando todos os níveis sociais, econômicos e culturais; porém, os segundos não o podem, devido terem a única possibilidade de serem respondidos pelo próprio educando que aprendeu. O estudante deve “demonstrar se aprendeu” alguma coisa (teste), o que é muito diferente de “dar informação” sobre alguma coisa (questionário). 

No caso de assumirmos que um teste poderia dar conta do desempenho dos estudantes em conteúdos de todas as dimensões sobre as quais sinalizamos, deveríamos elaborá-los através de um conjunto de questões, em primeiro lugar, de caráter nacional; a seguir, esse teste deveria ser subdividido em pelos menos 27 diferentes instrumentos, para, minimamente, atender cada um dos nossos estados federados, que contém especificidades; e, por último, esses 27 testes deveriam ser subdivididos em miríades de outros tantos testes, os quais deveriam incluir as especificidades dos espaços socioculturais menores, agora, os locais. Isso seria impossível num mesmo instrumento, pois que nossa capacidade de conhecer e sua validade operam por partes. Descartes falava que conhecemos “parte extra-partes”; partes que se integram e se configuram por alguma afinidade entre elas. O uno formado pelo múltiplo. 

Diante de tal inviabilidade, nas avaliações em larga escala do sistema nacional de ensino, o avaliador optou por um instrumento de coleta de dados, denominado teste nacional, cujo objetivo é medir as aprendizagens do conteúdo de caráter nacional (ou universal, como deveria sê-lo) do currículo escolar, que, afinal, todo estudante deste país necessita e deve adquirir. Não deveria também adquirir desempenho sobre conteúdos regionais e locais? Com certeza, sim. Contudo, como os conteúdos nacionais (e, quiçá, universais) são imprescindíveis para o desenvolvimento do ser humano, importa colocá-lo à frente dos conteúdos regionais e locais.

Essa opção do avaliador tem consequências que merecem ser sinalizadas. Daí, minha segunda observação emergente das práticas de avaliação de larga escala no sistema nacional de ensino.
Essas práticas, com as características que têm sido realizadas, já ao longo de alguns anos, estão sinalizando a todos os educadores --- desde ministro da educação, governadores, secretários de educação estaduais e municipais, diretores de escolas e seus estafes, assim como aos professores e às professoras --- que, ao lado de cuidarem, no ensino, dos conteúdos que contemplam as diferenças regionais e locais, necessitam de cuidar sobremaneira dos conteúdos de caráter nacional do currículo escolar do país, pois que esses são conteúdos essenciais para a democratização da cultura elaborada.

A ciência não é local ou regional. A ciência, para ser ciência, necessita ser universal, comprovada e validada nos meios científicos do mundo (falo em científico, compreendo também filosóficos, literários, artísticos...). Afinal, falo do conhecimento elaborado. Todos os cidadãos, em qualquer área de atividade, deveria ter a possibilidade de ampliar seus estados de consciência ao limite dos conhecimentos críticos e elaborados e, se fosse possível, para além deles.

Antônio Gramsci, militante político italiano, no decurso do século XX, lembrava que já seria bom que cada italiano soubesse o dialeto de sua comunidade (a Itálica é composta por muitos rincões e seus correspondentes dialetos), pois que, dessa forma, poderia comunicar-se com pares de sua comunidade, assim como integrar-se à cultura local. Todavia, além de ter posse do dialeto de sua comunidade, seria de todo conveniente que pudessem apropriar-se do italiano, língua de caráter nacional, de tal forma que, para além de cada comunidade, pudessem dialogar com todos os italianos e apropriar-se da cultura nacional. E, para além do italiano, dizia ele, seria bom e saudável que todo italiano aprendesse uma ou mais línguas estrangeiras, de tal forma que pudesse dialogar e assimilar culturas diferentes. Quanto mais abrangente for a consciência tanto mais enriquecido, livre e universal torna-se o ser humano.

Pois bem, o currículo nacional tem por objetivo integrar nossos educandos no mundo dos conhecimentos elaborados; o currículo regional e local tem por objetivo garantir-lhe “não perder o pé da terra”, isto é, não desvincular-se de suas raízes. Todavia, de forma alguma, se pode descuidar do ensino-aprendizagem do universal, pois que é ele que nos permite aprender a observar e entender que o mundo é maior do que a rua ou o bairro onde moramos. Metaforicamente e efetivamente, poderíamos dizer que nossa rua e nosso bairro são importantes, mas limitados diante da amplitude do mundo.

Se não nos colocarmos na contramão dessa compreensão de que o ser humano necessita universalizar sua consciência, sem perder contato com sua cultura local e regional, as práticas avaliativas de larga escala nos parecerão necessárias, à medida que estarão dizendo a todos nós: “Não descuidem de que seus estudantes tenham oportunidade e assimilem aquilo que a humanidade vem elaborando como compreensão do mundo; essas compreensões formam nossas consciências e dirigem nossas condutas. Quanto mais universal for a consciência do ser humano, mais eles terão oportunidade de viver em paz e bem”. 

Então, todas as nossas escolas, de norte a sul, de leste a oeste, aprenderão a investir muitos esforços --- e... muito mais esforços --- para que os seus educandos aprendam o necessário e significativo legado da humanidade, para que, com esse suporte, sejam criativos e universalizem suas consciências, como a ciência é universal. Só, então, enxergarão o mundo.


As avaliações de larga escala, da forma com tem sido praticadas com o foco no currículo nacional, lembra a todas as escolas deste país que não podem permanecer no limite do regional e do local, devem, integrando o regional e o local, o olhar voltado para aquilo que é nacional e universal. Gestores educacionais necessitam deixar de considerar que a abordagem mais abrangente dos currículos escolares, em todos os níveis de ensino, seja um desvio. Ao contrário, caso assumam compreender que importa que os educandos apropriem-se da cultura elaborada hoje existente no mundo, entenderão e investirão nesse processo. Os atos avaliativos existem não para que nos defendamos dos resultados obtidos pelas práticas avaliativas, mas sim para aprender com elas. A autodefesa não nos permite aprender nada. O que nos permite aprender é escutar o que a realidade nos diz.






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5 comentários:

  1. Explicou de uma maneira tão simples, o que as vezes travamos uma batalha para discutir e tentar explicar. Gostei muito do texto.

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  2. As avaliações em larga escala estabelecem um critério de correção e análise de dados partindo das Matrizes e Currículos. As diversidades regionais e dentro das escolas, considerando desde os diversos níveis de aprendizagem àqueles portadores de atendimentos especializado dificulta e interfere nos resultados das escolas. é compreensível o formato das avaliações de forma homogênea, o que não possibilita a escola utilizar esse instrumento como única forma de diagnose para elaboração do Plano de Ação.

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  3. As avaliações de larga escala, da forma com tem sido praticadas com o foco no currículo nacional, lembra a todas as escolas deste país que não podem permanecer no limite do regional e do local, devem, integrando o regional e o local, o olhar voltado para aquilo que é nacional e universal.

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