Texto publicado anteriormente no Terra Blog, em Salvador, 25 de maio de 2013.
Cipriano Luckesi
Aqui e acolá, em minhas andanças pelo país, recebo uma pergunta sobre as
avaliações de larga escala praticadas em nosso meio, cujo objeto de
investigação é o sistema nacional de ensino. Usualmente, as perguntas levantam
dúvidas sobre a qualidade dos instrumentos de coleta de dados, tendo em vista
essas práticas avaliativas --- Prova Brasil, SAEB, ENEM, ENADE, IDEB.
Certamente que um instrumento de coleta de dados pode conter algum limite e,
sendo identificado, importa superá-lo. Todavia, tem me tocado, nessas ocasiões,
a insistência em afirmar que a prática da avaliação de larga escala não é uma
boa coisa e que apresenta desvios em relação ao que é ensinado na escola e o
desempenho que é solicitado nos instrumentos.
Desejo fazer duas observações, a partir das perguntas que frequentemente
recebo.
A primeira delas tem a ver com o fato de que, devido as práticas
avaliativas de larga abrangerem fenômenos de escala nacional --- o ensino em
escala nacional em seus diversos níveis ---, os instrumentos de coleta de dados
sobre o desempenho dos estudantes estarem compostos por conteúdos de
ensino-aprendizagem relativos ao currículo escolar no seu nível mais
abrangente, o nacional, isto é, esses instrumentos não tem como seu objetivo
contemplar as diversidades regionais e, menos ainda, as locais. Através desses
instrumentos, os dados são coletados sobre o país, como um todo. Fato que
implica que especificidades regionais e locais curriculares não são levadas em
conta.
Esses instrumentos estão constituídos através de recursos metodológicos
e técnicos adequados a uma investigação de caráter nacional, que, por si, opera
em todas as regiões do país, levando-se em conta aquilo que torna o país
homogêneo e não aquilo que diferencia cada região ou localidade.
Pergunta-se: Isso é viável? A resposta é sim, devido ao fato de que o
ensino no país tem um currículo que contém (01) conteúdos nacionais
(certamente, os universais da ciência e das diversas áreas de conhecimento),
(02) conteúdos da cultura regional e (03) conteúdos da cultura local. Os
instrumentos de coleta de dados de larga escala --- que cobrem o país como um
todo ---, por si, não tem como contemplar as singularidades regionais e locais.
Para se levar em conta essas singularidades, teríamos que que inverter o
processo, ou seja, optaríamos por uma avaliação do sistema local de ensino, com
conotações regionais e, possivelmente, nacionais. Em primeiro lugar, estaria o
foco no local, com um crescendo para os outros níveis socioculturais mais
abrangentes. O que ocorre é que o avaliador (do sistema nacional de ensino)
optou por tomar como foco prioritário o aspecto nacional --- o que,
pessoalmente, considero adequado ---, daí, então, os instrumentos não
contemplarem as diferenças socioculturais regionais e locais.
Essa opção significa que os conteúdos regionais e locais não são
importantes? Não, de forma alguma. Essa opção implica simplesmente que é
inviável, num único instrumento, contemplar o nacional, o regional e o local em
termos de conteúdos escolares, tenho em vista abordar a aprendizagem efetiva
dos educandos. Como argumento, seria fácil dizer que o IBGE aplica
questionários com essa variabilidade de conteúdos. Importa observar que os
questionários sociais, econômicos e culturais solicitam “informações”
censitárias e não desempenhos, o que torna esses instrumentos de coleta de
dados muito diferentes dos testes da aprendizagem, que solicitam desempenhos.
Então, os primeiros podem, e certamente devem, ser abrangentes sob todas
as óticas, abordando todos os níveis sociais, econômicos e culturais; porém, os
segundos não o podem, devido terem a única possibilidade de serem respondidos
pelo próprio educando que aprendeu. O estudante deve “demonstrar se aprendeu”
alguma coisa (teste), o que é muito diferente de “dar informação” sobre alguma
coisa (questionário).
No caso de assumirmos que um teste poderia dar conta do desempenho dos
estudantes em conteúdos de todas as dimensões sobre as quais sinalizamos,
deveríamos elaborá-los através de um conjunto de questões, em primeiro lugar,
de caráter nacional; a seguir, esse teste deveria ser subdividido em pelos
menos 27 diferentes instrumentos, para, minimamente, atender cada um dos nossos
estados federados, que contém especificidades; e, por último, esses 27 testes
deveriam ser subdivididos em miríades de outros tantos testes, os quais
deveriam incluir as especificidades dos espaços socioculturais menores, agora,
os locais. Isso seria impossível num mesmo instrumento, pois que nossa
capacidade de conhecer e sua validade operam por partes. Descartes falava que
conhecemos “parte extra-partes”; partes que se integram e se configuram por
alguma afinidade entre elas. O uno formado pelo múltiplo.
Diante de tal inviabilidade, nas avaliações em larga escala do sistema
nacional de ensino, o avaliador optou por um instrumento de coleta de dados,
denominado teste nacional, cujo objetivo é medir as aprendizagens do conteúdo
de caráter nacional (ou universal, como deveria sê-lo) do currículo escolar,
que, afinal, todo estudante deste país necessita e deve adquirir. Não deveria
também adquirir desempenho sobre conteúdos regionais e locais? Com certeza,
sim. Contudo, como os conteúdos nacionais (e, quiçá, universais) são
imprescindíveis para o desenvolvimento do ser humano, importa colocá-lo à
frente dos conteúdos regionais e locais.
Essa opção do avaliador tem consequências que merecem ser sinalizadas.
Daí, minha segunda observação emergente das práticas de avaliação de larga
escala no sistema nacional de ensino.
Essas práticas, com as características que têm sido realizadas, já ao
longo de alguns anos, estão sinalizando a todos os educadores --- desde
ministro da educação, governadores, secretários de educação estaduais e
municipais, diretores de escolas e seus estafes, assim como aos professores e
às professoras --- que, ao lado de cuidarem, no ensino, dos conteúdos que
contemplam as diferenças regionais e locais, necessitam de cuidar sobremaneira
dos conteúdos de caráter nacional do currículo escolar do país, pois que esses
são conteúdos essenciais para a democratização da cultura elaborada.
A ciência não é local ou regional. A ciência, para ser ciência,
necessita ser universal, comprovada e validada nos meios científicos do mundo
(falo em científico, compreendo também filosóficos, literários, artísticos...).
Afinal, falo do conhecimento elaborado. Todos os cidadãos, em qualquer área de
atividade, deveria ter a possibilidade de ampliar seus estados de consciência
ao limite dos conhecimentos críticos e elaborados e, se fosse possível, para
além deles.
Antônio Gramsci, militante político italiano, no decurso do século XX,
lembrava que já seria bom que cada italiano soubesse o dialeto de sua
comunidade (a Itálica é composta por muitos rincões e seus correspondentes
dialetos), pois que, dessa forma, poderia comunicar-se com pares de sua
comunidade, assim como integrar-se à cultura local. Todavia, além de ter posse
do dialeto de sua comunidade, seria de todo conveniente que pudessem
apropriar-se do italiano, língua de caráter nacional, de tal forma que, para
além de cada comunidade, pudessem dialogar com todos os italianos e
apropriar-se da cultura nacional. E, para além do italiano, dizia ele, seria
bom e saudável que todo italiano aprendesse uma ou mais línguas estrangeiras,
de tal forma que pudesse dialogar e assimilar culturas diferentes. Quanto mais
abrangente for a consciência tanto mais enriquecido, livre e universal torna-se
o ser humano.
Pois bem, o currículo nacional tem por objetivo integrar nossos
educandos no mundo dos conhecimentos elaborados; o currículo regional e local
tem por objetivo garantir-lhe “não perder o pé da terra”, isto é, não
desvincular-se de suas raízes. Todavia, de forma alguma, se pode descuidar do
ensino-aprendizagem do universal, pois que é ele que nos permite aprender a
observar e entender que o mundo é maior do que a rua ou o bairro onde moramos.
Metaforicamente e efetivamente, poderíamos dizer que nossa rua e nosso bairro
são importantes, mas limitados diante da amplitude do mundo.
Se não nos colocarmos na contramão dessa compreensão de que o ser humano
necessita universalizar sua consciência, sem perder contato com sua cultura
local e regional, as práticas avaliativas de larga escala nos parecerão
necessárias, à medida que estarão dizendo a todos nós: “Não descuidem de que
seus estudantes tenham oportunidade e assimilem aquilo que a humanidade vem
elaborando como compreensão do mundo; essas compreensões formam nossas
consciências e dirigem nossas condutas. Quanto mais universal for a consciência
do ser humano, mais eles terão oportunidade de viver em paz e bem”.
Então, todas as nossas escolas, de norte a sul, de leste a oeste,
aprenderão a investir muitos esforços --- e... muito mais esforços --- para que
os seus educandos aprendam o necessário e significativo legado da humanidade,
para que, com esse suporte, sejam criativos e universalizem suas consciências,
como a ciência é universal. Só, então, enxergarão o mundo.
As avaliações de larga escala, da forma com tem sido praticadas com o
foco no currículo nacional, lembra a todas as escolas deste país que não podem
permanecer no limite do regional e do local, devem, integrando o regional e o
local, o olhar voltado para aquilo que é nacional e universal. Gestores
educacionais necessitam deixar de considerar que a abordagem mais abrangente
dos currículos escolares, em todos os níveis de ensino, seja um desvio. Ao
contrário, caso assumam compreender que importa que os educandos apropriem-se
da cultura elaborada hoje existente no mundo, entenderão e investirão nesse
processo. Os atos avaliativos existem não para que nos defendamos dos
resultados obtidos pelas práticas avaliativas, mas sim para aprender com elas.
A autodefesa não nos permite aprender nada. O que nos permite aprender é
escutar o que a realidade nos diz.
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Explicou de uma maneira tão simples, o que as vezes travamos uma batalha para discutir e tentar explicar. Gostei muito do texto.
ResponderExcluirSimples e direto, ótimo texto.
ResponderExcluirBom dia.
ResponderExcluirAs avaliações em larga escala estabelecem um critério de correção e análise de dados partindo das Matrizes e Currículos. As diversidades regionais e dentro das escolas, considerando desde os diversos níveis de aprendizagem àqueles portadores de atendimentos especializado dificulta e interfere nos resultados das escolas. é compreensível o formato das avaliações de forma homogênea, o que não possibilita a escola utilizar esse instrumento como única forma de diagnose para elaboração do Plano de Ação.
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ResponderExcluirAs avaliações de larga escala, da forma com tem sido praticadas com o foco no currículo nacional, lembra a todas as escolas deste país que não podem permanecer no limite do regional e do local, devem, integrando o regional e o local, o olhar voltado para aquilo que é nacional e universal.
Adorei abordagem do texto, claro e objetivo.
ResponderExcluirExplicação clara e de fácil compreensão.
ResponderExcluirAs avaliações em larga escala colaboram para que haja uma unidade curricular, colaborando para garantir a correlação entre o local e o universal, a fim de que nas particularidades regionais o currículo nacional seja garantido.
ResponderExcluirA unidade do currículo nacional traz aos educandos condições de estar sempre em continuidade, sem perder a sequência ao longo da sua mudanças de escola ao longo da vida escolar.
ResponderExcluirO texto explora as complexidades das avaliações de larga escala no sistema nacional de ensino, destacando a importância dessas práticas para medir o conhecimento de conteúdos nacionais essenciais, como Prova Brasil, SAEB, ENEM, ENADE e IDEB. O autor argumenta que, embora esses instrumentos não contemplem especificidades regionais e locais, eles cumprem um papel importante ao avaliar conhecimentos universais e essenciais para o desenvolvimento intelectual e cultural dos estudantes. O texto também enfatiza a necessidade de equilibrar conteúdos nacionais e universais com as raízes locais e regionais, para que os estudantes possam expandir sua compreensão de mundo sem perder o vínculo com suas origens.
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