Texto publicado anteriormente no Terra Blog, em Salvador, 4 de julho de 2013
Cipriano Luckesi
A leitura dos dois posts anteriores deste blog, que
tratam das distorções epistemológicas e das distorções presentes no exercício
de atribuir e no operar com notas em nossas escolas, faz surgir a pergunta que
compõe o título deste texto, assim como servirá de base para melhor
entendimento da abordagem que se faz a seguir, com a presença de dois subtemas:
(01) qual nossa prática hoje na atribuição de notas escolares; (02) qual seria
a possibilidade de atuar de outra maneira.
Ensinar e aprender tem simplesmente a ver com “ensinar e aprender”.
Parece óbvio, porém não o é.
De fato, as notas escolares, como elas são praticas hoje em nossas
escolas, de todos os níveis de ensino, a meu ver, somente são prejudiciais à
melhor qualidade do ensino-aprendizagem. Elas abrem uma “fresta” nas práticas
pedagógicas, tanto sob a ótica do educador como do educando, no que se refere
ao efetivoensino e à efetiva aprendizagem.
O uso das notas escolares, como temos visto, na sua usual prática,
formam crianças, adolescentes e adultos, para se contentarem com a “nota que
aprova” e não com a competência pessoal.
As falas dos estudantes — que também foram as minhas enquanto estudante
— tem aproximadamente as seguintes formulações: “ - Nem preciso mais frequentar
as aulas. Já passei. Tenho nota de sobra”; “ - Para que estudar tanto? Só
preciso de um ponto”; “ - Nem estudei tanto, mas já tenho nota para passar”;
etc… Todos recordam de suas falas a respeito das notas escolares. De outro
lado, os professores, assim como os pais, constantemente lembram aos seus
estudantes e filhos, respectivamente: “- Você precisa melhorar sua nota.
Estude”. Afinal, todos vinculados às notas muitíssimo mais do que aos
conhecimentos, que geram as capacidades humanas de todos os cidadãos do mundo.
Para bem compreender o que vai se expor neste texto, importa estarmos
conscientes de que, na vida, agimos com base nos conhecimentos que temos e não
nas notas escolares que obtivemos. No que se segue, tentaremos mostrar que o
que importa é ensinar bem e aprender bem; as notas são formas de registros da
memória escolar. Nada mais que isso, ainda que, historicamente, se tenha criado
outro significado para elas, ainda que distorcidos.
Como temos abordado anteriormente, o ato de avaliar exige um fundamento
de realidade. Epistemologicamente, se afirma que a qualidade não existe por si,
mas existe em outro. O que isso que dizer?
A qualidade é uma atribuição com base em dados da realidade. Por
exemplo, num concurso de miss (hoje já fora dos modismos sociais), todas as
mulheres concorrentes são mulheres (dado de realidade); e,
levando em conta as variáveis relativas aos seus atributos físicos, os
jurados atribuem-lhes qualidades de beleza, a partir de um padrão
de beleza, que eles assumem como tal e como válido.
Isto quer dizer que dizendo-se “realidade” (descritiva dos dados) não se
está dizendo “qualidade” (atribuição). A qualidade, como atribuição à
realidade, só emerge pela comparação da realidade descrita com algum critério
(padrão) de qualidade assumido.
A qualidade será satisfatória, quando ocorrer da realidade preencher os
requisitos do critério e será insatisfatória quando a realidade não preencher
os requisitos do critério.
Para este estudo, importa saber que a qualidade, epistemologicamente,
além de ter as características de ser umaatribuição à realidade
(não é a própria realidade) e de ter dois polos (positivo-negativo),
tem também a característica dahierarquia, isto é, ela pode apresentar
uma variação que vai do menos para o mais ou do mais para o menos.
Nesse sentido, a qualidade não se expressa num ponto “zero”; ela é ou
positiva ou negativa (em conformidade com o diagrama: - —– 0 —– +) e apresenta
variações possíveis em degraus para mais ou para menos.
Coisa semelhante ocorre nas categorias gramaticais, onde o substantivo
se apresenta no ponto “zero” (= diz o que a coisa é), mas, o adjetivo, que o
qualifica, pode variar, dando-se nos padrões normal, diminutivo, aumentativo e
até superlativo.
A partir do fato da qualidade ter essa característica de “ser
hierarquizável”, usualmente, com essa base, tem-se tomado a decisão de criar,
de forma correspondente, uma escala classificatória, um ranking.
Todos os fatos epistemológicos, acima sinalizados, estão enfeixados na
nota escolar, que, supostamente representaria a “qualidade” da
aprendizagem de cada educando, contudo, como vimos nos textos anteriores,
efetivamente, não representam esse dado.
No cotidiano de nossas escolas, hoje, o modo de atribuir notas aos
estudantes, se realiza da seguinte forma: elas são atribuídas como somatório
dos “pontos” definidos para esta ou àquela tarefa realizada pelos educandos,
assim como para esta ou aquela questão respondida nos testes.
Então, na sequência dos atos pedagógicos supostamente avaliativos, com
esse somatório de pontos, que forma a nota, cada estudante, individualmente, é
classificado num ponto de uma escala decimal, que vai de zero a dez, tendo um
ponto de corte, no qual e acima do qual se aprova, e, abaixo do qual, se
reprova.
Esse procedimento, ao final, ainda traz um adendo: os estudantes, como
são matriculados em turmas, suas notas podem ser (e, por vezes, o são)
organizadas, oficial ou oficiosamente, numa escala classificatória entre eles,
que vai de quem obteve nota maior para quem obteve nota menor; afinal, um ranking.
O rankeamento pode ser e tem sido feito com as notas, mas ele não
pertence a elas. O rankeamento é uma decisão pedagógica e/ou
administrativa externa às notas
Esse modo comum de agir em nossas escolas traz (01) a distorção da
transformação de “qualidade” em “quantidade de qualidade”, como também (02)
traz a distorção das médias; distorções configuradas em textos anteriores deste
blog.
Contudo, para que o registro da “qualidade” da aprendizagem do educando,
seja somente o registro da “qualidade da sua aprendizagem”, e não nota, como é
compreendida e praticada hoje, o caminho seria outro, diverso de nossas notas
escolares atuais.
Em primeiro lugar, haveria necessidade de assumir “nota” como “anotação”
(= registro) da “qualidade” do desempenho do estudante em sua aprendizagem e
não registro da “quantidade de qualidade”.
A partir desse ponto, no sistema em geral e na escola como unidade de
ensino (espaço que nos interessa diretamente neste texto), haveria necessidade
de um efetivo investimento na qualidade satisfatória da pratica educativa e
pedagógica, iniciando-se pelo planejamento do ensino.
Vamos supor que, em uma determinada escola e numa determinada série
escolar inicial (poderia ser uma série escolar de qualquer nível de ensino),
planejamos ensinar os seguintes conteúdos no tópico adição, em aritmética: (01)
raciocínio aditivo; (02) fórmula da adição; (03) propriedades da adição; (04)
solução de problemas simples de adição; (05) solução de problemas complexos de
adição.
Após executar o planejado pela mediação das atividades
de ensino-aprendizagem (exposição, compreensão, exercitação, aplicação,
recriação), desejamos saber se os estudantes aprenderam satisfatoriamente o
que ensinamos, à medida que o que importa na escola é “aprender”.
Para tanto, praticamos um ato de avaliar o desempenho
dos estudantes na aprendizagem dos conteúdos em ensinamento; ato este que
implica, em primeiro lugar, na descrição do desempenho do estudante.
Para essa descrição, necessitamos de algum instrumento de
coleta de dados sobre o desempenho do educando nos cinco tópicos de conteúdos
definidos. Nossa capacidade de observar a realidade é bastante restrita, por
isso, necessitamos de recursos que a ampliem, subsidiando uma satisfatória
coleta de dados, que, por sua vez, propicia uma boa descritiva da realidade.
Nem mais nem menos que isso.
No instrumento de coleta de dados, cobrimos sistematicamente todos os
conteúdos ensinados, através de questões (ou tarefas) destinadas a convidar o
estudante a manifestar sua aprendizagem em cada um dos cincos tópicos
planejados, tendo presente as categorias de condutas: assimilação das
informações, a formação das habilidades necessárias como expressão da
aprendizagem (= procedimentos na operação com os conteúdos), capacidade de usar
ativamente os conhecimentos.
Também, para a elaboração do instrumento de coleta de dados, definimos
previamente os tipos e as quantidades de questões e/ou tarefas que comporão o
instrumento (ou os instrumentos) de coleta de dados, tendo em vista cobrir
sistematicamente a descrição do objeto da avaliação.
Definimos ainda quantos acertos do estudante serão necessários para
poder afirmar que ele aprendeu o necessário, tendo presente as tarefas e/ou
questões de teste relativas a cada um dos tópicos do conteúdo. Basta um acerto
em cada tópico e em cada uma das categorias de conduta previamente
estabelecidas? Dois acertos? Três acertos?
Definido isso, aplica-se o instrumento. Após correção, tendo presente a
definição do padrão “aceitável”, caso o educando manifeste desempenho satisfatório,
nada mais a fazer.
Mas, caso apresente desempenho insatisfatório, haverá que investir ainda
em sua aprendizagem, desde que a única coisa que importa numa escola é a
aprendizagem do educando.
Aqui, no caso, investir predominantemente no que revelou não ter
aprendido, pois que importa que tenha um desempenho satisfatório em todos os
tópicos do conteúdo, segundo as categorias de conduta aprendida.
Adquirir todos conhecimentos e habilidades expressos nos conteúdos dos
cinco tópicos elencados no planejamento representa o “mínimo necessário de
aprendizagens” nessa unidade de conteúdo, que o educando deve adquirir. Não
basta acertar aleatoriamente 7 ou 10 ou 15 das 20 ou 25 questões ou tarefas
propostas no instrumento de coleta de dados, como “convites ao desempenho”.
Então, importa que o estudante manifeste ter aprendido suficientemente
bem os conteúdos dos cinco tópicos definidos no planejamento do ensino: (01)
raciocínio aditivo, (02) fórmula da operação, (03) propriedades da adição, (04)
solução de problemas simples e (05) solução de problemas complexos.
Caso, através do instrumento de coleta de dados, manifeste não ter
processado aprendizagem satisfatória, deverá ser reorientado para que aprenda;
e, com esse procedimento, chegará ao nível de satisfatoriedade da aprendizagem
proposta e necessária. Será o investimento na qualidade da aprendizagem que
produzirá a satisfatoriedade.
Então, com o nível satisfatório de aprendizagem em todos os tópicos de
conteúdos, podemos registrar a qualidade de sua aprendizagem nos documentos
oficiais da escola, que significará o registro de nosso testemunho de que
investimos no educando e ele efetivamente aprendeu o necessário.
Tendo presente as variações genéticas e socioculturais entre os seres
humanos, podemos arbitrariamente registrar as qualidades das aprendizagens dos
estudantes em duas possíveis expressões simbólicas: uma para representar aqueles
que “aprenderam o necessário” e outra para representar aqueles que, para além
de aprender o necessário, manifestaram-se “refinados” na operação e uso dos
conhecimentos aprendidos. Norman Groulund — teórico norte-americano da área da
avaliação da aprendizagem — nos lembra que existem aprendizagens “para o
domínio” (= o necessário) e “para o desenvolvimento” (= possibilidades mais
refinadas de compreensão e ação)
O registro poderia ser, em “símbolos numéricos”, por exemplo, 8,0 (oito)
para quem aprendeu o necessário, e 10,0 (dez) para quem se manifestou mais
refinado em conhecimentos e habilidades; mas também poderia ser 9.0 (nove) e
10.0 (dez), respetivamente; ou qualquer outra simbologia.
Evidentemente, que os símbolos numéricos propostos são arbitrários, como
seriam arbitrários quaisquer outros símbolos que viessem a ser adotados.
Poderíamos tomar símbolos alfabéticos — “A” para registrar desempenhos mais
refinados, e “B” para registrar desempenhos no nível da “aprendizagem do
necessário”. Ou outro qualquer.
O fato de mudar a simbologia de registro não modifica em nada os
procedimentos do ato avaliativo, à medida que o registro é externo ao ato de
avaliar. A “qualidade” da aprendizagem poderá ser registrada em conformidade
com uma simbologia definida coletiva e institucionalmente, como usualmente
ocorre. No Brasil, a simbologia mais comumente utilizada é a numérica, o que
ajuda a confundir “qualidade” com “quantidade”.
Se agíssemos pedagogicamente, levando em conta o “mínimo necessário”
(isto é, levando sistematicamente em conta todo o conhecimento em uma unidade
de estudos), estaríamos sustentando a necessidade e a possibilidade de
democratizar o ensino. Apostaríamos que ninguém poderia deixar de aprender “o
necessário”.
Se todos aprendem o necessário, todos tem a possibilidade de se
equalizar, ao menos educativamente, o que possibilita que cada um “busque o seu
lugar ao sol”. E mais: se todos aprendem o necessário, todos estão habilitados
a prosseguir refinando seu modo de compreender e atuar no mundo. A base teria
sido estabelecida para todos.
Observar que, nas formas de registro aqui propostas, não se está
buscando uma média de “quantidades de qualidades”, mas sim a “qualidade das
aprendizagens” expressas pelos educandos, e, registradas por esse ou aquele
símbolo. Busca-se a qualidade satisfatória como a única opção possível. Como se
diz popularmente, “Você tem, para sua escola, duas opções: buscar a qualidade
satisfatória ou buscar a qualidade satisfatória”.
Este modelo de registro de resultados exige investimento intencional na
aprendizagem satisfatória dos estudantes, tanto por parte do sistema de ensino
quanto dos educadores individualmente. O registro de satisfatoriedade na
aprendizagem não decorrerá de uma compensação, seja por que razão for. Não será
um registro (nota = anotação) gratuito. Será, sim, o registro de uma
aprendizagem buscada e efetivamente construída.
Com esse modelo, não existiria nem retenção (reprovação) nem fracasso
escolar. Só atividade bem sucedida. Tal resultado, sem sombra de dúvidas,
exigirá de todos mais atenção e mais cuidado no ensino-aprendizagem. Afinal,
nada mais do que investimento na construção dos resultados que foram definidos
no planejamento do ensino.
Se assumirmos transitar do modelo de notas escolares, hoje praticado,
para o modelo do registro da qualidade da aprendizagem satisfatória sobre os
“conteúdos necessários”, estaremos transitando também para a qualidade
satisfatória da aprendizagem em nossas escolas.
E, então, estaremos agindo pedagogicamente em compatibilidade com o
objetivo de alcançar o ensino-aprendizagem democrático, isto é, todos chegam ao
mínimo necessário e, dessa forma ocorrendo, não haverá fracasso escolar. Porém,
sim, escola de qualidade para todos.
O ato de avaliar é o parceiro dessa jornada que se propõe a ser bem
sucedida, isto é, diagnosticar o desempenho do educando na aprendizagem e, se
necessário, intervir para que chegue à aprendizagem necessária; de forma
alguma, “qualquer aprendizagem”; somente a necessária.
Essa é a forma epistemológica de como se praticar o registro da
qualidade de uma aprendizagem positivamente construída.
As distorções, sinalizadas em textos anteriores, ocorrem quando o
registro numérico (ou o registro alfabético — usualmente também transformado em
numérico) é assumido como uma “quantidade de qualidade”, o que, de fato, não
existe.
Em avaliação busca-se revelar a qualidade e, como tal, só pode ser
registrada, nunca operada quantitativamente.
========================================================================
Nenhum comentário:
Postar um comentário