quinta-feira, 2 de outubro de 2014

43 - Então, como atribuir notas, se essa é a prática em nossas escolas


Texto publicado anteriormente no Terra Blog, em Salvador, 4 de julho de 2013
Cipriano Luckesi


A leitura dos dois posts anteriores deste blog, que tratam das distorções epistemológicas e das distorções presentes no exercício de atribuir e no operar com notas em nossas escolas, faz surgir a pergunta que compõe o título deste texto, assim como servirá de base para melhor entendimento da abordagem que se faz a seguir, com a presença de dois subtemas: (01) qual nossa prática hoje na atribuição de notas escolares; (02) qual seria a possibilidade de atuar de outra maneira.

Ensinar e aprender tem simplesmente a ver com “ensinar e aprender”. Parece óbvio, porém não o é.

De fato, as notas escolares, como elas são praticas hoje em nossas escolas, de todos os níveis de ensino, a meu ver, somente são prejudiciais à melhor qualidade do ensino-aprendizagem. Elas abrem uma “fresta” nas práticas pedagógicas, tanto sob a ótica do educador como do educando, no que se refere ao efetivoensino e à efetiva aprendizagem.

O uso das notas escolares, como temos visto, na sua usual prática, formam crianças, adolescentes e adultos, para se contentarem com a “nota que aprova” e não com a competência pessoal.

As falas dos estudantes — que também foram as minhas enquanto estudante — tem aproximadamente as seguintes formulações: “ - Nem preciso mais frequentar as aulas. Já passei. Tenho nota de sobra”; “ - Para que estudar tanto? Só preciso de um ponto”; “ - Nem estudei tanto, mas já tenho nota para passar”; etc… Todos recordam de suas falas a respeito das notas escolares. De outro lado, os professores, assim como os pais, constantemente lembram aos seus estudantes e filhos, respectivamente: “- Você precisa melhorar sua nota. Estude”. Afinal, todos vinculados às notas muitíssimo mais do que aos conhecimentos, que geram as capacidades humanas de todos os cidadãos do mundo.

Para bem compreender o que vai se expor neste texto, importa estarmos conscientes de que, na vida, agimos com base nos conhecimentos que temos e não nas notas escolares que obtivemos. No que se segue, tentaremos mostrar que o que importa é ensinar bem e aprender bem; as notas são formas de registros da memória escolar. Nada mais que isso, ainda que, historicamente, se tenha criado outro significado para elas, ainda que distorcidos.

Como temos abordado anteriormente, o ato de avaliar exige um fundamento de realidade. Epistemologicamente, se afirma que a qualidade não existe por si, mas existe em outro. O que isso que dizer?

A qualidade é uma atribuição com base em dados da realidade. Por exemplo, num concurso de miss (hoje já fora dos modismos sociais), todas as mulheres concorrentes são mulheres (dado de realidade); e, levando em conta as variáveis relativas aos seus atributos físicos, os jurados atribuem-lhes qualidades de beleza, a partir de um padrão de beleza, que eles assumem como tal e como válido.

Isto quer dizer que dizendo-se “realidade” (descritiva dos dados) não se está dizendo “qualidade” (atribuição). A qualidade, como atribuição à realidade, só emerge pela comparação da realidade descrita com algum critério (padrão) de qualidade assumido.

A qualidade será satisfatória, quando ocorrer da realidade preencher os requisitos do critério e será insatisfatória quando a realidade não preencher os requisitos do critério.

Para este estudo, importa saber que a qualidade, epistemologicamente, além de ter as características de ser umaatribuição à realidade (não é a própria realidade) e de ter dois polos (positivo-negativo), tem também a característica dahierarquia, isto é, ela pode apresentar uma variação que vai do menos para o mais ou do mais para o menos.

Nesse sentido, a qualidade não se expressa num ponto “zero”; ela é ou positiva ou negativa (em conformidade com o diagrama: - —– 0 —– +) e apresenta variações possíveis em degraus para mais ou para menos.

Coisa semelhante ocorre nas categorias gramaticais, onde o substantivo se apresenta no ponto “zero” (= diz o que a coisa é), mas, o adjetivo, que o qualifica, pode variar, dando-se nos padrões normal, diminutivo, aumentativo e até superlativo.

A partir do fato da qualidade ter essa característica de “ser hierarquizável”, usualmente, com essa base, tem-se tomado a decisão de criar, de forma correspondente, uma escala classificatória, um ranking.

Todos os fatos epistemológicos, acima sinalizados, estão enfeixados na nota escolar, que, supostamente representaria a “qualidade” da aprendizagem de cada educando, contudo, como vimos nos textos anteriores, efetivamente, não representam esse dado.
No cotidiano de nossas escolas, hoje, o modo de atribuir notas aos estudantes, se realiza da seguinte forma: elas são atribuídas como somatório dos “pontos” definidos para esta ou àquela tarefa realizada pelos educandos, assim como para esta ou aquela questão respondida nos testes.

Então, na sequência dos atos pedagógicos supostamente avaliativos, com esse somatório de pontos, que forma a nota, cada estudante, individualmente, é classificado num ponto de uma escala decimal, que vai de zero a dez, tendo um ponto de corte, no qual e acima do qual se aprova, e, abaixo do qual, se reprova.

Esse procedimento, ao final, ainda traz um adendo: os estudantes, como são matriculados em turmas, suas notas podem ser (e, por vezes, o são) organizadas, oficial ou oficiosamente, numa escala classificatória entre eles, que vai de quem obteve nota maior para quem obteve nota menor; afinal, um ranking. O rankeamento pode ser e tem sido feito com as notas, mas ele não pertence a elas. O rankeamento é uma decisão pedagógica e/ou administrativa externa às notas

Esse modo comum de agir em nossas escolas traz (01) a distorção da transformação de “qualidade” em “quantidade de qualidade”, como também (02) traz a distorção das médias; distorções configuradas em textos anteriores deste blog.

Contudo, para que o registro da “qualidade” da aprendizagem do educando, seja somente o registro da “qualidade da sua aprendizagem”, e não nota, como é compreendida e praticada hoje, o caminho seria outro, diverso de nossas notas escolares atuais.

Em primeiro lugar, haveria necessidade de assumir “nota” como “anotação” (= registro) da “qualidade” do desempenho do estudante em sua aprendizagem e não registro da “quantidade de qualidade”.

A partir desse ponto, no sistema em geral e na escola como unidade de ensino (espaço que nos interessa diretamente neste texto), haveria necessidade de um efetivo investimento na qualidade satisfatória da pratica educativa e pedagógica, iniciando-se pelo planejamento do ensino.

Vamos supor que, em uma determinada escola e numa determinada série escolar inicial (poderia ser uma série escolar de qualquer nível de ensino), planejamos ensinar os seguintes conteúdos no tópico adição, em aritmética: (01) raciocínio aditivo; (02) fórmula da adição; (03) propriedades da adição; (04) solução de problemas simples de adição; (05) solução de problemas complexos de adição.

Após executar o planejado pela mediação das atividades de ensino-aprendizagem (exposição, compreensão, exercitação, aplicação, recriação), desejamos saber se os estudantes aprenderam satisfatoriamente o que ensinamos, à medida que o que importa na escola é “aprender”.

Para tanto, praticamos um ato de avaliar o desempenho dos estudantes na aprendizagem dos conteúdos em ensinamento; ato este que implica, em primeiro lugar, na descrição do desempenho do estudante.

Para essa descrição, necessitamos de algum instrumento de coleta de dados sobre o desempenho do educando nos cinco tópicos de conteúdos definidos. Nossa capacidade de observar a realidade é bastante restrita, por isso, necessitamos de recursos que a ampliem, subsidiando uma satisfatória coleta de dados, que, por sua vez, propicia uma boa descritiva da realidade. Nem mais nem menos que isso.

No instrumento de coleta de dados, cobrimos sistematicamente todos os conteúdos ensinados, através de questões (ou tarefas) destinadas a convidar o estudante a manifestar sua aprendizagem em cada um dos cincos tópicos planejados, tendo presente as categorias de condutas: assimilação das informações, a formação das habilidades necessárias como expressão da aprendizagem (= procedimentos na operação com os conteúdos), capacidade de usar ativamente os conhecimentos.

Também, para a elaboração do instrumento de coleta de dados, definimos previamente os tipos e as quantidades de questões e/ou tarefas que comporão o instrumento (ou os instrumentos) de coleta de dados, tendo em vista cobrir sistematicamente a descrição do objeto da avaliação.

Definimos ainda quantos acertos do estudante serão necessários para poder afirmar que ele aprendeu o necessário, tendo presente as tarefas e/ou questões de teste relativas a cada um dos tópicos do conteúdo. Basta um acerto em cada tópico e em cada uma das categorias de conduta previamente estabelecidas? Dois acertos?  Três acertos?

Definido isso, aplica-se o instrumento. Após correção, tendo presente a definição do padrão “aceitável”, caso o educando manifeste desempenho satisfatório, nada mais a fazer.

Mas, caso apresente desempenho insatisfatório, haverá que investir ainda em sua aprendizagem, desde que a única coisa que importa numa escola é a aprendizagem do educando.

Aqui, no caso, investir predominantemente no que revelou não ter aprendido, pois que importa que tenha um desempenho satisfatório em todos os tópicos do conteúdo, segundo as categorias de conduta aprendida.

Adquirir todos conhecimentos e habilidades expressos nos conteúdos dos cinco tópicos elencados no planejamento representa o “mínimo necessário de aprendizagens” nessa unidade de conteúdo, que o educando deve adquirir. Não basta acertar aleatoriamente 7 ou 10 ou 15 das 20 ou 25 questões ou tarefas propostas no instrumento de coleta de dados, como “convites ao desempenho”.

Então, importa que o estudante manifeste ter aprendido suficientemente bem os conteúdos dos cinco tópicos definidos no planejamento do ensino: (01) raciocínio aditivo, (02) fórmula da operação, (03) propriedades da adição, (04) solução de problemas simples e (05) solução de problemas complexos.

Caso, através do instrumento de coleta de dados, manifeste não ter processado aprendizagem satisfatória, deverá ser reorientado para que aprenda; e, com esse procedimento, chegará ao nível de satisfatoriedade da aprendizagem proposta e necessária. Será o investimento na qualidade da aprendizagem que produzirá a satisfatoriedade.

Então, com o nível satisfatório de aprendizagem em todos os tópicos de conteúdos, podemos registrar a qualidade de sua aprendizagem nos documentos oficiais da escola, que significará o registro de nosso testemunho de que investimos no educando e ele efetivamente aprendeu o necessário.

Tendo presente as variações genéticas e socioculturais entre os seres humanos, podemos arbitrariamente registrar as qualidades das aprendizagens dos estudantes em duas possíveis expressões simbólicas: uma para representar aqueles que “aprenderam o necessário” e outra para representar aqueles que, para além de aprender o necessário, manifestaram-se “refinados” na operação e uso dos conhecimentos aprendidos. Norman Groulund — teórico norte-americano da área da avaliação da aprendizagem —  nos lembra que existem aprendizagens “para o domínio” (= o necessário) e “para o desenvolvimento” (= possibilidades mais refinadas de compreensão e ação)

O registro poderia ser, em “símbolos numéricos”, por exemplo, 8,0 (oito) para quem aprendeu o necessário, e 10,0 (dez) para quem se manifestou mais refinado em conhecimentos e habilidades; mas também poderia ser 9.0 (nove) e 10.0 (dez), respetivamente; ou qualquer outra simbologia.

Evidentemente, que os símbolos numéricos propostos são arbitrários, como seriam arbitrários quaisquer outros símbolos que viessem a ser adotados. Poderíamos tomar símbolos alfabéticos — “A” para registrar desempenhos mais refinados, e “B” para registrar desempenhos no nível da “aprendizagem do necessário”. Ou outro qualquer.

O fato de mudar a simbologia de registro não modifica em nada os procedimentos do ato avaliativo, à medida que o registro é externo ao ato de avaliar. A “qualidade” da aprendizagem poderá ser registrada em conformidade com uma simbologia definida coletiva e institucionalmente, como usualmente ocorre. No Brasil, a simbologia mais comumente utilizada é a numérica, o que ajuda a confundir “qualidade” com “quantidade”.

Se agíssemos pedagogicamente, levando em conta o “mínimo necessário” (isto é, levando sistematicamente em conta todo o conhecimento em uma unidade de estudos), estaríamos sustentando a necessidade e a possibilidade de democratizar o ensino. Apostaríamos que ninguém poderia deixar de aprender “o necessário”.

Se todos aprendem o necessário, todos tem a possibilidade de se equalizar, ao menos educativamente, o que possibilita que cada um “busque o seu lugar ao sol”. E mais: se todos aprendem o necessário, todos estão habilitados a prosseguir refinando seu modo de compreender e atuar no mundo. A base teria sido estabelecida para todos.

Observar que, nas formas de registro aqui propostas, não se está buscando uma média de “quantidades de qualidades”, mas sim a “qualidade das aprendizagens” expressas pelos educandos, e, registradas por esse ou aquele símbolo. Busca-se a qualidade satisfatória como a única opção possível. Como se diz popularmente, “Você tem, para sua escola, duas opções: buscar a qualidade satisfatória ou buscar a qualidade satisfatória”.

Este modelo de registro de resultados exige investimento intencional na aprendizagem satisfatória dos estudantes, tanto por parte do sistema de ensino quanto dos educadores individualmente. O registro de satisfatoriedade na aprendizagem não decorrerá de uma compensação, seja por que razão for. Não será um registro (nota = anotação) gratuito. Será, sim, o registro de uma aprendizagem buscada e efetivamente construída.

Com esse modelo, não existiria nem retenção (reprovação) nem fracasso escolar. Só atividade bem sucedida. Tal resultado, sem sombra de dúvidas, exigirá de todos mais atenção e mais cuidado no ensino-aprendizagem. Afinal, nada mais do que investimento na construção dos resultados que foram definidos no planejamento do ensino.

Se assumirmos transitar do modelo de notas escolares, hoje praticado, para o modelo do registro da qualidade da aprendizagem satisfatória sobre os “conteúdos necessários”, estaremos transitando também para a qualidade satisfatória da aprendizagem em nossas escolas.

E, então, estaremos agindo pedagogicamente em compatibilidade com o objetivo de alcançar o ensino-aprendizagem democrático, isto é, todos chegam ao mínimo necessário e, dessa forma ocorrendo, não haverá fracasso escolar. Porém, sim, escola de qualidade para todos.

O ato de avaliar é o parceiro dessa jornada que se propõe a ser bem sucedida, isto é, diagnosticar o desempenho do educando na aprendizagem e, se necessário, intervir para que chegue à aprendizagem necessária; de forma alguma, “qualquer aprendizagem”; somente a necessária.

Essa é a forma epistemológica de como se praticar o registro da qualidade de uma aprendizagem positivamente construída.
As distorções, sinalizadas em textos anteriores, ocorrem quando o registro numérico (ou o registro alfabético — usualmente também transformado em numérico) é assumido como uma “quantidade de qualidade”, o que, de fato, não existe.


Em avaliação busca-se revelar a qualidade e, como tal, só pode ser registrada, nunca operada quantitativamente.





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