quinta-feira, 2 de outubro de 2014

37 - Cuidados necessários na prática da avaliação da aprendizagem

Texto anteriormente publicado no Terra Blog em 11/3/2013
 Cipriano Luckesi
Salvador, 11/03/2013

Os exames escolares — modo de agir na educação escolar que, historicamente, precede a compreensão e prática da avaliação da aprendizagem — sempre foram exercidos como uma atividade em si e por si, independente de tudo o mais na prática pedagógica no seio da sala de aulas, na escola. Eles têm sua vigência exclusiva entre meados do século XVI e os inícios do século XX, quando, em torno de 1930, um jovem educador norte-americano, Ralph Tyler, inicia a expor sua compreensão sobre a necessidade de que a prática educativa escolar fosse eficiente, ou seja, que efetivamente crianças e adolescentes, na sua totalidade, fossem bem sucedidos na escola. Até o presente momento histórico, não abrimos mão — de todo — dos exames em nossas escolas, ainda que sua prática já esteja mitigada por compreensões e práticas avaliativas.

Os exames têm como característica abordar exclusivamente o passado de aprendizagem dos educandos: caso os educandos revelem, através dos exames (da forma como são propostos; quase sempre com uma abordagem distorcida dos procedimentos — tipos de perguntas — e dos conteúdos), que aprenderam o que lhes foi perguntado (passado de aprendizagens), serão aprovados; em caso contrário, serão reprovados.

Já Tyler propunha abordar, ao mesmo tempo, o passado, presente e o futuro. Tomar como base o presente, ou seja, (01) ensinar alguma coisa (ato pedagógico); (02) diagnosticar a qualidade dos resultados obtidos (procedimento metodológico no presente, tendo por base um passado de aprendizagens); (03) caso o resultado se manifeste positivo, seguir em frente (resultados satisfatórios de um investimento no passado); (04) caso o resultado se expresse negativo, ensinar de novo (novo investimento, portanto, um ato voltado para o futuro). Afinal, esse é o pano de fundo (= procedimento metodológico) de qualquer ato avaliativo, em Tyler e em todos os outros pesquisadores da educação que se dedicaram a compreender o ato avaliativo.

Observando o modo de agir em cada uma dessas duas possibilidades (examinar e avaliar), os exames escolares podem atuar — e atuam — independentes das configurações do ato pedagógico. Eles podem, e usualmente são realizados, sem levar em conta o “pano de fundo” do ato pedagógico, que implica em ter presente suas variáveis intervenientes, assim como variáveis do ator principal do ato de ensinar, o educador.

Os exames, na vida social, têm por objetivo selecionar indivíduos que detenham determinadas capacidades instaladas — ou seja, se detêm as capacidades desejadas e esperadas, ele está aprovado (= incluído), se não as detêm, está reprovado (= excluído). Aos examinadores não interessa o diagnóstico de uma situação, visando uma intervenção para sua melhoria. Sua atuação se encerra na classificação “aprovado/reprovado”. Para compreender isso, basta observar como atuma em qualquer concurso, cujo objetivo seja ou selecionar pessoas para determinadas funções institucionais ou classificá-las tendo em vista alguma premiação.

A avaliação, por outro lado, — que está a serviço da obtenção do melhor resultado com determinada ação, e, pois, voltada para o futuro, como sinalizamos acima — está comprometida com a obtenção dos resultados do que se deseja. Isso implica que o avaliador não age independente de um pano de fundo pedagógico (variáveis do ato de ensinar) e de um modo de ser necessário ao educador em suas relações com o educando (ele é o adulto da relação pedagógica). O avaliador está comprometido com o pano de fundo, aqui, no caso, da ação pedagógica, que configura o norte da ação.

Não há como praticar avaliação da aprendizagem, sem que essa aprendizagem esteja configurada previamente. Afinal, o que se deseja com a ação de ensinar? A avaliação, de modo subsidiário, servirá a esse desejo. Ela é a parceira que sinalizará ao gestor (aquele que gere a ação) se está produzindo os resultados na qualidade desejada, ou não. Se sim, ótimo; caso, contrário, há que se cuidar da ação para que, reorientada, atinja o que se deseja. Com isso fica claro, que, para se praticar a avaliação, há que se ter clareza do projeto ao qual ela está servindo. O projeto da ação é a matriz que dá direção e contorno ao ato de avaliar.

Então, que variáveis configuram o pano de fundo da prática pedagógica?

Em primeiro lugar, importa ter presente o que se deseja atingir: o conteúdo da aprendizagem do educando, assim como o critério para aceitar a qualidade atingida; em segundo lugar, através de que proposta pedagógica se dará o ensino-aprendizagem (proposta da memorização dos conteúdos; da compreensão ativa dos conteúdos; da compreensão ativa dos conteúdos, articulados com seus determinantes sociais e políticos…; ou poderia ser também — tradicional, piagetiana, montessoriana, freireana… ); e, por último, com que finalidade se efetua a prática pedagógica escolar, ou seja, com que filosofia político-social se age, à medida que ela aponta a direção e o significado da ação pedagógica (afinal: qual a razão dessa ação?;  que se pretende com ela frente à vida em sociedade? por que agir desta e não daquela forma? agir desta e não daquela forma, que efeito tem na vida social?). Sem esse pano de fundo, não há como conceber e praticar a avaliação da aprendizagem.

Sem ele, (1) não se saberá qual “conteúdo essencial” será levado em consideração na elaboração de instrumentos de coleta de dados sobre o desempenho do educnado, como também sobre a leitura desses dados; ainda, sem ela, (2) não se saberá que tipo de conduta inteligente dever-se-á esperar e solicitar no desempenho do educando; como, também, (3) não se saberá com que motivação político-social o educador estará atuando e investindo em sua atividade (que ideário motiva o educador a agir dessa ou daquela forma?). Sem o pano de fundo, acima configurado, não haverá contorno para a avaliação, à medida que ela está a serviço da ação, na expectativa de que venha a ser qualitativamente bem sucedida.

O segundo conjunto de variáveis, às quais necessitamos de ter presente está comprometido tem a ver com o educador. A prática da hetero-avaliação, que é típica da prática escolar, exige o avaliador (no caso, o educador) e o avaliado (no caso, o educando).

Para que essa relação seja minimamente saudável, importa que o educador, como líder e gestor da sala de aulas, assuma o papel de adulto da relação pedagógica. Isso significa que o educador age com maturidade emocional e com ética. Maturidade emocional significa que o educador é capaz de tomar todas e quaisquer situações ocorridas na escola e na sala de aulas, como importantes para a formação do educando, seja confirmando-a ou confrontando-a, sem se assustar com elas, encontrando a melhor solução para a vivência equilibrada no seio da vida escolar.

Daniel Goleman tem um belo livro intitulado Inteligência emocional, que oferece excelentes compreensões sobre a maturidade emocional.

De fato, o que importa é que não “entremos no jogo emocional” que se faz presente nas relações sociais, de tal forma que possamos assumir uma conduta ética, onde o que prevalece é o limite da realidade, onde podemos e devemos agir como educadores e os educandos podem e devem agir como educandos, cada um com os seus devidos papéis. O educador sempre ciente de que ele é o adulto da relação pedagógica e, como tal, administrador dos estados emocionais emergentes.

Então, desse lugar — como gestor da prática pedagógica —, o educador terá clareza do que levar em consideração para praticar o ato de avaliar, ou seja: (1) os resultados a serem obtidos, com qualidade positiva, como resultado do investimento na ação proposta (2) as características do aprendido em conformidade com os procedimentos metodológicos configurados no projeto pedagógico; (3) o  ideário pedagógico que deveria ter norteado a ação pedagógica. Por último, emocional e eticamente, terá presente que é o adulto da relação pedagógica, ou seja, que suas decisões avaliativas não poderão ter um caráter emocional.

Essas considerações mostram que tanto o instrumento de coleta de dados para a avaliação da aprendizagem, como a própria leitura dos dados coletados, terão como balizamento uma configuração, definida no projeto pedagógico, estável, menos volúvel que os estados emocionais, que sempre acercam educadores e educandos.


Sem esses cuidados, o que se pratica em nossas escolas poderá ser denominado de avaliação, mas efetivamente não o será. Poderá até mesmo caracterizar-se como uma prática examinativa, mas não avaliativa.







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